Em defesa da cultura
Um dos mais velhos truques da opressão do capital sobre as classes e camadas que oprime é o de fingir que não está em luta. Que a cada assalto, a cada passo, a cada posição, a cada lei, a cada escola fechada, a cada sector produtivo desmantelado, a cada privatização por si levada a cabo, em nada mais do que numa honesta preocupação pelo interesse geral se pode encontrar o seu verdadeiro motivo e explicação.
Nem mesmo aqueles que tudo fazem para atrasar o rumo da históriada (...) conseguem já retomar as famosas teses ilusionistas do «fim da história» sem se darem, no mínimo, ao ridículo Antetítulo: Aprofund
Tal qual uma erva daninha tentando minar a fertilidade da justa luta do povos, há épocas em que este manhoso truque de ilusionismo histórico parece alcançar todos os palcos para actuar; outras há em que a consciência geral dos oprimidos se movimenta com tal força rumo à emancipação que consegue, nesse movimento, impor a realidade da luta à ilusão da harmonia de classes.
Após a derrota do socialismo na URSS e na Europa de Leste – vão mais de duas décadas – viveu-se uma época de ascenso do ilusionismo histórico em que o capital anunciou a sua vitória para sempre, e, junto a esse anúncio, outro: o desmantelamento do motor da história – a luta de classes – e, acto mágico contínuo, «eis o fim da história!», tendo a humanidade supostamente chegado a uma época na qual o capital zelaria pelo interesse geral dos povos, onde exploradores e explorados conviveriam de forma harmoniosa, isto é, sem interesses antagónicos.
Incontáveis mercadorias culturais têm sido produzidas para sustentar esta ilusão; esplendorosos meios de produção e difusão dessas mercadorias culturais têm sido disponibilizados para espalhar a «boa-nova»; milhões de trabalhadores de todo o mundo, das mais diversas especialidades, têm sido contratados para alimentarem o mercado da ilusão ideológica à escala planetária.
Todavia, não obstante a força investida nesta ilusão, a realidade da exploração, da guerra e da miséria alastra como um cancro pelo planeta e, saltando o real aos sentidos e aos bolsos adentro, tornou-se rapidamente impossível para o capital continuar a abafar o poderoso rugir do motor da história – a luta de classes.
Nem mesmo aqueles que tudo fazem para atrasar o rumo da história, da construção de um mundo sem exploradores nem explorados, conseguem já retomar as famosas teses ilusionistas do «fim da história» sem se darem, no mínimo, ao ridículo.
É portanto elucidativo que esta ilusão da vitória para sempre do capitalismo tenha, num curtíssimo espaço do tempo histórico – pouco mais de vinte anos – entrado em derrocada.
No campo oposto ao da ilusão da harmonia de classes vai-se impondo no real a luta dos trabalhadores e dos povos contra a barbárie capitalista e, apesar das derrotas sofridas no final do século XX, o que se mantém neste início de século XXI é a pertinência, a actualidade e a urgência da alternativa socialista e do comunismo.
Se começamos o presente artigo sobre questões da luta pela cultura falando da oposição ilusão/realidade é porque é sempre necessário relembrar que a cultura, num contexto óbvio de permanência e agudização da luta de classes, é terreno ideológico e, por isso, necessariamente, um campo de batalha.
Trata-se de uma batalha que o capital assume sem rodeios – ainda que parte das suas estratégias visem dissimular este facto –, onde a multiplicação da mentira é simultaneamente mais uma área de negócio a explorar assim como poderoso instrumento de veiculação ideológica.
A questão da propriedade dos meios de produção, criação e difusão cultural
Bertolt Brecht, num dos seus muitos poemas, afirmou – referindo-se ao surgimento da rádio enquanto meio de comunicação de massas – que «as novas antenas continuam a espalhar as velhas mentiras». Nos tempos de hoje, em que novos meios de comunicação de massas continuam a desenvolver-se incessantemente, a reflexão de Brecht permanece actual na constatação que faz do óbvio: o desenvolvimento tecnológico e o progresso científico não são necessariamente sinónimo de uma passagem a um estádio superior de cultura já que as novas descobertas podem perfeitamente ser colocadas ao serviço da ilusão e da opressão dos povos.
Esta contradição é também analisada em profundidade por Bento de Jesus Caraça através do binómio civilização/cultura na sua importantíssima conferência de 1933, «A cultura integral do indivíduo – problema central do nosso tempo». Diz Caraça: «se o desenvolvimento da civilização (…), só por si, pode conduzir ao automatismo e à consequente escravização do homem, o que nos é mostrado pela civilização capitalista actual, é isso devido não a um alto mas sim a um baixo grau de cultura que permite que os meios de progresso sejam utilizados num ambiente de completo abandono dos objectivos superiores da vida. (…) E esse abandono, e a adulteração que se lhe segue, só podem ser evitados pelo reforçamento intenso da cultura; esta aparece assim como um condicionador e correctivo constante da marcha da civilização».
Desta forma, e como tão bem entendia isto Bertolt Brecht, a luta pela cultura não pode nunca abandonar a luta pela posse colectiva e democrática dos grandes meios de produção, criação e difusão dela própria, a luta por colocar esses instrumentos ao serviço da emancipação, da transformação e da liberdade. Para caminharmos no sentido de resolver a contradição civilização/cultura tal como exposta por Bento de Jesus Caraça é essencial que a luta pelos meios de produção da cultura esteja sempre presente naqueles que almejam a alternativa à dominação cultural do capital. Também na cultura a questão da propriedade é o fulcro da luta.
É portanto neste vasto campo de batalha ideológico e na materialidade – e por isso propriedade – dos vastos meios de produção de cultura que devemos enquadrar aquilo que têm sido as políticas culturais de direita no nosso País assim como resistência cultural que se lhe opõe e que importa continuar a alargar e organizar.
As políticas culturais de direita protagonizadas por PS, PSD e CDS
Ao arrepio da Constituição da República Portuguesa saída da forja de Abril, o que caracteriza no essencial as políticas culturais de direita iniciadas com a contra-revolução é a desresponsabilização progressiva do Estado das suas funções culturais e a sua estreita cumplicidade com o capital no lançamento e desenvolvimento da mercantilização da cultura, concretizando uma aliança que, também na esfera da cultura, inclui a abdicação dos interesses nacionais aos interesses económicos do grande capital transnacional.
Desta forma o grande capital domina a quase totalidade dos meios de comunicação de massas e mesmo aqueles que ainda se mantêm na esfera pública, com raras excepções, estão formatados a estratégias próprias dos meios que se encontram nas mãos de privados.
A vaga privatizadora e/ou de remodelação estratégica de serviços públicos numa perspectiva de abdicação aos interesses do capital avança nas escolas, nos museus, nas universidades, na edição, no património, na ciência, nas artes, no audiovisual, enfim, por toda a parte a autonomia relativa dos fazedores de cultura vai sendo comprimida a um ponto nunca antes visto após a Revolução de Abril.
O desenvolvimento do enorme potencial possibilitado pela Revolução de Abril está portanto, por via das políticas de direita do PS, PSD e CDS, num estado de bloqueamento generalizado estando em curso um processo cujas linhas fundamentais temos elencado da seguinte forma:
1 – abandono de qualquer perspectiva real de democratização cultural;
2 – desresponsabilização do Estado das suas funções culturais e brutal redução de meios – orçamentais, técnicos, políticos e humanos – de apoio, dinamização e desenvolvimento cultural, cuja face mais explícita é a actual cabimentação de apenas 0,1 por cento do Orçamento Geral do Estado para a área da cultura;
3 – elitização, centralização, municipalização, privatização e mercantilização da cultura;
4 – crescente burocratização das relações entre o Estado e os agentes culturais;
5 – extrema precarização e desprofissionalização do exercício das actividades culturais, científicas e artísticas;
6 – concepção da cultura como apenas mais uma área da actividade económica, centrada nomeadamente em torno das chamadas «indústrias culturais e criativas», cujos valores, gostos, e critérios são no fundamental determinados por um mercado capitalista globalizado e hegemónico e pelos eixos da ofensiva ideológica que lhe estão associados.
Oportunismos e reformismos
Perante o descalabro que representa para inúmeros agentes da cultura as presentes políticas culturais de direita e uma vez mais consolidadas no Orçamento Geral do Estado para 2015, as armadilhas que se irão colocar à luta pela democracia cultural em vésperas de eleições legislativas serão muitas.
Importa por isso ir desmistificando algumas questões que muito provavelmente farão parte do discurso armadilhado dos partidos da política de direita.
Obviamente ninguém irá dizer que se for governo irá reduzir o investimento na cultura e desenvolver políticas anti-culturais. Irão concerteza ser apresentadas supostas «alternativas» que nada mais serão do que o aprofundamento das políticas de direita.
Uma das linhas da «narrativa» será a discussão em torno do serviço público que o Estado deverá prestar. Neste ponto importa lembrar que tanto o anterior governo PS como o actual Governo PSD/CDS fundamentam as suas políticas em torno dos estudos ditos «científicos» – mas na verdade estudos de conclusões pré-estabelecidas – da empresa de consultoria Augusto Mateus & Associados, empresa do antigo ministro da Economia do governo PS/Guterres que tem sido pau para toda a obra, seja para concluir através de aprofundados estudos o encerramento dos Estaleiros de Viana do Castelo, seja para, entre outros brilhantes feitos, concluir pelo aprofundamento da linha de desresponsabilização do Estado das suas funções culturais em servil sintonia com os ditames da União Europeia.
Aquando da divulgação do primeiro estudo desta empresa, intitulado «O sector cultural e criativo em Portugal», perante a euforia de que este sector seria responsável por uma importante parcela da riqueza produzida em Portugal, apesar de o estudo afirmar a determinada altura que «os projectos a incentivar devem ser encarados numa perspectiva de rendibilização económica alargada e de sustentabilidade», agentes de diversos sectores da cultura regozijaram-se por verem nesta conclusão a obrigatoriedade de um maior investimento do Estado na cultura.
Não poderiam estar mais errados, e Gabriela Canavilhas, ministra da Cultura do governo PS/Sócrates, veio logo prestar esclarecimentos em entrevista ao jornal Público (24/03/2010) afirmando que o «Ministério da Cultura teria de ter a coragem de diminuir o número de apoios e apostar na qualidade». Contente com a prestação do mercado afirma também que «esse estudo não significa que, pelo facto de vasto sector resultar em PIB, o Ministério deve investir mais. É uma prova de que o mercado funciona. O estudo é fundamental para analisarmos onde é que ele não funciona para podermos canalizar para aí os nossos apoios». Mais à frente Gabriela Canavilhas, secundada por uma das conclusões do brilhante estudo, considera também que ao Ministério da Cultura «caberia um importante papel no fomento da competitividade do tecido empresarial do sector cultural e criativo».
Caberia ao Estado portanto, não o papel de inverter a lógica mercantilista e privatizadora da cultura, mas apenas assegurar que os «bens meritórios» que não funcionam dentro da «lógica do mercado» possam existir. Quanto à definição de «bens meritórios» o discurso da antiga ministra não poderia ser mais vazio, tais bens seriam aqueles que «realmente transformam o ser humano no contacto com eles».
Naturalmente é este o papel que o PS prevê para a cultura assim como para tantos outros sectores, isto é, desde que o capital assegure, ainda que servindo os seus interesses predatórios e de hegemonia ideológica, o PS entende que estão defendidos os interesses do povo português e que o Estado deve retirar-se. E nisto, o seus companheiros de alternância – PSD e CDS – estão obviamente de acordo, aliás o difícil é perceber onde não estão.
Dentro desta lógica simultaneamente oportunista e reformista estará também no centro das atenções o regresso ou não do Ministério da Cultura, como se esta ferramenta esvaziada de investimento e meios tivesse qualquer possibilidade de servir qualquer política de real democratização da cultura.
Deste rol de «boas-novas», a perspectiva de substituição de uma política de Estado para a cultura por uma política onde o Estado, pela via de isenções fiscais, financiaria privados para serem eles a decidirem as políticas culturais que a todos nós dizem respeito é uma perspectiva que vai sendo cada vez mais colocada pelos partidos da política de direita à qual chamam, cinicamente, de «mecenato cultural».
Lutar pela alternativa, lutar pela democracia cultural
Nos últimos anos a luta contra este rumo para a cultura tem vindo a assumir uma expressão crescente, tanto quantitativa como qualitativa e onde os comunistas têm assumido o seu papel de vanguarda.
Importa saudar o Manifesto em Defesa da Cultura, um movimento que em três anos de existência tem dado um enorme contributo para trazer a luta em defesa da cultura para o centro da luta geral do povo português, unindo através de núcleos locais e regionais criados pelo País, tanto os trabalhadores da cultura, como amadores e tantos outros conscientes da importância do papel emancipador, transformador e libertador da cultura.
Ainda há muito trabalho por fazer em defesa da cultura mas as bases estão lançadas e vão-se solidificando.
Importa no essencial alargar e organizar esta luta em torno de ideias e acções que reforcem a luta geral por uma alternativa patriótica e de esquerda, aprendendo e colocando no futuro o património de luta do povo português que em longos momentos de resistência, também cultural, encontrou as suas formas específicas de organização, conquistou vastos instrumentos de dinamização e criação cultural de que o Movimento Associativo Popular é exemplo maior.
Saibamos prosseguir e reforçar a resistência, alicerçando-a antes de mais nos instrumentos da cultura que aqueles que resistiram antes de nós edificaram, num constante aprofundar da consciência de classe – aspecto essencial que caracteriza um ser humano culto segundo Bento de Jesus Caraça –, aspecto essencial para elevação do patamar de luta.