Irá chover em Caracas?
Como com maior ou menor rigor se vai sabendo, isto de poder usar um televisor que permite o acesso a muitas dezenas de canais, dificilmente se sabe ao certo quantos, confere ao telespectador dito comum a ilusão de poder estar razoavelmente informado acerca do que mais relevante vai acontecendo no País e no mundo. Quanto ao nosso próprio País, a ilusão facilmente se desfaz ao contacto quotidiano com a realidade que nos assalta mal se troca o ecrã do televisor pelos umbrais da porta da rua. No que tem a ver com o mundo, a coisa é mais difícil: de facto estamos aprisionados pelo efeito dos media que dia após dia, hora após hora, entram em nossas casas e nas nossas cabeças injectando-lhes as versões (agora diz-se «as narrativas») que mais lhes apetecem ou, mais exactamente, que mais convêm aos que os detêm. Para mais, é difícil e muito raro que um telespectador possa aceder a todos os canais verdadeiramente interessantes, isto é, cujos habituais conteúdos na verdade interessem para a construção de uma visão bem informada e lúcida do que vai acontecendo por esses continentes afora. Assim, é fácil para quase todos nós saber dos rigores invernosos que se abatem sobre os Estados Unidos, informação presente até nos canais generalistas portugueses, mas não tanto das trágicas penúrias alimentares no chamado Terceiro Mundo que vitimizam crianças a uma velocidade diária que ignoramos. O alegado «interesse» do telespectador tem supostas regras que a nossa razão desconhece.
Uma «reprise» a caminho
Por exemplo: é difícil saber o que dia após dia vem acontecendo na Venezuela e talvez especialmente na sua capital, Caracas. É certo que por vezes a televisão pratica a caridade de nos dar notícias desse país importante por vários sólidos motivos, mas são não apenas más notícias, digamos assim, mas também notícias estranhas. Por exemplo: é curiosa a quantidade de estudantes que, a avaliar pelo que a TV nos conta, troca facilmente os livros e o estudo pelas manifestações contra o governo. Aliás, não se trata de uma particularidade exclusiva da Venezuela bolivariana: na verdade, é impressionante a frequência com que somos informados de que nos mais diversos lugares do mundo as manifestações contra os poderes locais, em tais casos quase invariavelmente hostis aos valores ocidentais ou euroatlânticos, são desencadeadas por estudantes ou por estudante lideradas, tanto e de tal modo que podemos ficar preocupados com o seu aproveitamento escolar ou, na alternativa, com a autenticidade da sua condição de estudantes. Também vamos sendo informados de que aquilo na Venezuela está uma miséria porque o governo Maduro, incorrigível, não cede e recusa o modelo sócio-político que os Estados Unidos lhe propõem. Estávamos, pois, nesse entendimento quando um contratempo técnico nos impôs a visita de um amigo e camarada, especialista em televisores e não só, cujo nome a mera gratidão aconselha que aqui fique registado: Carlos Rodrigues. E o camarada e amigo não apenas solucionou o embaraço técnico que surgira, o que foi obviamente óptimo, como, usando informações colhidas em canais a que nem todos podem aceder, dissipou muitas das ignorâncias que decerto se acastelam nas cabecinhas dos telespectadores vulgares, chamemos-lhes assim. Explicou ele, referindo dados concretos e fontes verdadeiramente fidedignas, que na Venezuela tem vindo a ser urdida, sob o alto patrocínio de «experts» USA, uma teia em quase tudo semelhante à que em 73 fez desabar sobre o Chile a tempestade que matou Allende, torturou até à morte milhares de democratas e entregou o Chile ao paraíso capitalista desenhado pelos economistas norte-americanos. Perante aquela verdadeiramente preciosa dose de esclarecimentos, tornou-se ainda mais evidente que a televisão a que comummente temos acesso anda a poupar-nos o incómodo de conhecermos dados fundamentais para o entendimento do que está a acontecer na Venezuela. E, lembrando a senha que antecedeu o golpe de Pinochet, «Chove em Santiago», é natural que nos perguntemos qual a intensidade do risco de que, um dia destes, vá «chover» em Caracas.