Consagrar um por cento do Orçamento do Estado para a cultura no início da próxima legislatura e evoluir, até ao fim do mandato, para uma dotação de um por cento do Produto Interno Bruto (equivalente ao triplo daquele valor) – esta é uma das principais propostas do PCP para a área da cultura, reafirmada na passada segunda-feira na audição «Democratizar a Cultura, Valorizar os seus Trabalhadores», inserida na construção do programa eleitoral.
Ao longo do debate, que se desenrolou ao longo mais de duas horas e envolveu actores, arqueólogos, escritores, arquivistas, artistas plásticos e activistas sindicais e de movimentos unitários dos vários sectores da cultura, bem como dirigentes e eleitos comunistas, foram enunciadas outras propostas, que partem da intervenção realizada nos últimos anos, desenvolvendo-a.
Dos eixos centrais do programa do Partido para o sector (ainda em construção) falou, na primeira intervenção da tarde, Jorge Feliciano, membro da Comissão Nacional de Cultura, que adiantou um dos seus objectivos primordiais: a criação de um verdadeiro «serviço público de cultura», que tenha o Estado como motor. Só assim será possível garantir a almejada «democratização cultural» – que Abril conquistou e a Constituição da República consagra – e o correspondente acesso de todos à criação e à fruição cultural.
No mesmo sentido, o deputado Miguel Tiago lembrou algumas das iniciativas institucionais do Partido nos últimos anos, cujas linhas essenciais estarão presentes no futuro programa: a reformulação profunda dos concursos da Direcção-Geral das Artes, no sentido de garantir apoios dignos e justos aos criadores («não há justiça na distribuição de migalhas», afirmou); o financiamento da produção cinematográfica a partir do Orçamento do Estado e não, como actualmente acontece, de receitas de publicidade oriunda das empresas privadas; a garantia de apoio à primeira obra literária; a facilitação da partilha da obra artística salvaguardando os direitos dos criadores, entre outras.
Miguel Tiago chamou ainda a atenção para um projecto de resolução, apresentado recentemente, que consagra os direitos especiais dos jovens no acesso à cultura. No que diz respeito ao património e aos museus, sublinhou o deputado, o Partido não propôs novas leis por entender que as actuais servem os objectivos, sendo porém necessário garantir que são efectivamente cumpridas.
Precariedade e resistência
Tanto da parte dos eleitos e dirigentes do Partido como dos muitos profissionais das várias áreas da cultura presentes na audição surgiram relatos da brutal precariedade em que trabalham – quando trabalham – muitos dos trabalhadores da cultura, sejam eles criadores, artistas, técnicos ou operários. Esta situação, que era já generalizada, tornou-se insustentável nos últimos anos, em resultado dos cortes de 75 por cento impostos pelo Governo no apoio às artes.
O aumento do IVA dos bilhetes de espectáculos – uma das primeiras medidas do Governo PSD/CDS – contribuiu para o aumento das dificuldades dos grupos e companhias e, em consequência, para novas e mais graves violações dos direitos dos profissionais: o trabalho, precário, é cada vez mais mal pago e por vezes até gratuito. Muitos têm que acumular o trabalho artístico com outro, em sectores como as telecomunicações, por exemplo.
Também os revisores e os tradutores viram as suas profissões passarem por um acelerado processo de desvalorização, passando de funcionários de jornais e editoras a trabalhadores «independentes» e, sobretudo, ocasionais. Os revisores são, mesmo, uma «espécie em vias de extinção», denunciou-se na sessão. Já os arqueólogos vêem-se cada vez mais emparedados entre as grandes empresas de construção, donas das obras nas quais laboram, e as empresas de arqueologia e ambiente, para as quais trabalham. Salvo raras excepções, a umas e a outras interessará tudo menos que o arqueólogo tome qualquer decisão que possa prejudicar o andamento das obras.
Com diferenças pontuais de sector para sector, a precariedade é cada vez mais a regra na generalidade das profissões ligadas à cultura. Muitos dos intervenientes denunciaram ainda o desmantelamento dos serviços públicos, uns extintos ou integrados noutros, outros simplesmente privados de meios financeiros, materiais e humanos para cumprirem os seus desígnios.
Na audição falou-se também da resistência e da luta dos profissionais, integrados nos sindicatos e no Manifesto em Defesa da Cultura.
Jerónimo de Sousa
Cultura é factor de emancipação
Ao encerrar a audição da passada segunda-feira, que encheu por completo o salão do Centro de Trabalho Vitória, em Lisboa, Jerónimo de Sousa valorizou o projecto político do PCP, que «afirma como objectivo concreto a realização plena das conquistas de Abril e o seu aprofundamento» e integra a democracia cultural como «parte indissociável da alternativa que representa». Na concepção do PCP, lembrou, a democracia tem quatro vertentes inseparáveis – política, económica, social e cultural. Sem qualquer uma delas, «toda a democracia ficará sempre aquém das suas plenas potencialidades».
O Secretário-geral do Partido sublinhou, em seguida, as potencialidades da cultura, realçando que os avanços na sua democratização «produzirão efeitos no necessário desenvolvimento social». A cultura, acrescentou, é «factor de democratização da sociedade, que alarga a intervenção dos trabalhadores e do povo nos vários planos da vida», ao garantir a «liberdade de usar a imaginação, o sonho, a criatividade para encontrar saídas, recusar inevitabilidades, negar o fim da história». Assim, destacou, a criação artística tem sido, é, e continuará a ser «uma forma de intervir para transformar o mundo»; e a luta pela defesa e valorização da cultura é e continuará a ser inseparável da defesa da paz e da independência nacional.
A concretização de uma política que aprofunde a democracia cultural implica, pois, romper com a política em curso que, lembrou, ora pelas mãos de PS ou PSD, com ou sem o CDS, «vai sendo relegada para o plano de adorno político, por um lado, e deixada aos caprichos do “mercado”, por outro». A supressão da liberdade cultural e artística que tem vindo a resultar designadamente da política dos dois últimos governos representa mesmo um «novo e mais grave passo no processo de reconfiguração do Estado, de afronta à Constituição e de retrocesso social», garantiu Jerónimo de Sousa.
O «lápis azul» foi substituído pela asfixia financeira e a política de promoção e apoio às artes foi reduzida a uma mera «organização de eventos, simultaneamente comerciais e decorativos da política da classe dominante. Já no que diz respeito ao património, «tudo é subordinado aos interesses económicos, muitas vezes privados, do turismo», daquele género de turismo que «faz do património um parque de diversões apenas ao alcance de quem pode pagar».