Saudade e simpatia

Correia da Fonseca

As­si­nado pelo jor­na­lista Jo­a­quim Vi­eira, a RTP2 trans­mitiu há dias um do­cu­men­tário com o tí­tulo re­ve­lador, mas também am­bíguo quanto à in­tenção da sua es­colha, de «Lá vamos can­tando e rindo», como se sabe a pri­meira es­trofe do hino que Mário Beirão es­creveu para a Mo­ci­dade Por­tu­guesa, a ju­ven­tude sa­la­za­rista, prima irmã da Ju­ven­tude Hi­tle­riana de si­nistra me­mória. É de crer que a in­tenção de Vi­eira tenha sido fazer uma abor­dagem do que foi a Mo­ci­dade Por­tu­guesa sem prévio «parti pris», de­pu­rada de in­tensas aver­sões por efeito das dé­cadas en­tre­tanto de­cor­ridas, de uma isenção exem­plar. Terá acon­te­cido, porém, que a isenção e o dis­tan­ci­a­mento pro­cu­rados por Vi­eira des­li­zaram para omis­sões e op­ções que trans­for­maram o do­cu­men­tário num tra­balho quase apo­lo­gé­tico da MP, tanto e de tal modo que não será de mais supor que o pró­prio Mar­celo Ca­e­tano, nos seus bons tempos de co­mis­sário da or­ga­ni­zação, não lhe re­cu­saria o seu «nihil obstat». O tom sempre con­des­cen­dente, quando não por vezes quase en­le­vado, com que o do­cu­men­tário re­fere as ac­ti­vi­dades da Mo­ci­dade Por­tu­guesa e de­sig­na­da­mente os seus sec­tores des­por­tivos como o es­tí­mulo à prá­tica da Vela e da Es­grima, fazem pensar que Vi­eira, apesar de nos seus anos pos­te­ri­ores ter so­frido pes­so­al­mente a bru­ta­li­dade da re­pressão sa­la­za­rista, ainda está de algum modo a sentir a doce mor­de­dura da sau­dade dos seus anos ju­venis. O do­cu­men­tário lem­brou-nos as velas no Tejo por obra e graça da MP, os êxitos que daí de­cor­reram. Mas não se lem­brou, e não nos lem­brou, que dos qua­dros da Mo­ci­dade Por­tu­guesa (co­man­dantes de cas­telo e por aí fora) saíram agentes da PIDE, um dos quais, pelo menos, Ar­mando de sua graça, se no­ta­bi­lizou pela re­pu­tação de ser um dos mais apli­cados na ta­refa pa­trió­tica de es­pancar presos po­lí­ticos.

A pa­lavra certa

E aqui, na­tu­ral­mente, é for­çoso en­trar no que foi es­sen­cial na Mo­ci­dade Por­tu­guesa ge­ne­ro­sa­mente evo­cada pela se­rena e dis­tan­ciada me­mória do do­cu­men­tário de Jo­a­quim Vi­eira: a dou­tri­nação ma­ciça dos jo­vens por­tu­gueses para que se tor­nassem con­victos sa­la­za­ristas, isto é, per­feitos nazi-fas­cistas na versão su­pos­ta­mente branda, ma non troppo, que foi o fas­cismo de Sa­lazar. Só em dois breves mo­mentos o do­cu­men­tário re­gistou a se­me­lhança e a pro­xi­mi­dade entre a Ju­ven­tude Hi­tle­riana e a Mo­ci­dade Por­tu­guesa: quando re­feriu que o cinto da or­ga­ni­zação alemã os­ten­tava uma fi­vela com o H de Hi­tler, tal como a MP usava o S de Sa­lazar, ade­reço pos­te­ri­or­mente en­ten­dido como a ini­cial de «servir» a fim de tentar iludir o óbvio pa­ren­tesco, e na in­clusão de ima­gens que tes­te­mu­nhavam o clima de ju­bi­losa fra­ter­ni­dade ha­vida no de­curso de um en­contro entre mem­bros da Mo­ci­dade Por­tu­guesa e da Ju­ven­tude Hi­tle­riana. É claro que os de­sen­vol­vi­mentos his­tó­ricos de­ter­mi­naram muito di­fe­rentes des­tinos para uma e outra or­ga­ni­zação, mas é sa­bido, em­bora ig­no­rado pelo do­cu­men­tário, que ambas ra­di­caram em ter­reno comum: na­ci­o­na­lismo ex­tre­mado para mo­bi­li­zação das massas (eficaz na Ale­manha, lar­ga­mente frus­trado num Por­tugal sem am­bi­ções de do­mínio sobre ou­tros povos eu­ro­peus), cum­pli­ci­dade ac­tiva com os po­deres fi­nan­ceiros, an­ti­co­mu­nismo feroz. Cu­ri­o­sa­mente, no do­cu­men­tário de Jo­a­quim Vi­eira mal se fala deste úl­timo as­pecto, ele lá sa­berá porquê, mas esse é um dado cuja falta ali muito se faz sentir porque, como fa­cil­mente se en­tende, à vi­o­lência da re­pressão an­ti­co­mu­nista e, mais am­pla­mente, an­ti­de­mo­crá­tica, muito con­vinha uma massa ju­venil dou­tri­nada du­rante os anos em que obri­ga­to­ri­a­mente pas­sava pela Mo­ci­dade Por­tu­guesa. Na ver­dade, a MP não era apenas uma vasta se­men­teira de pos­sí­veis apoi­antes da di­ta­dura sa­la­za­rista, era também uma se­men­teira de qua­dros e de cúm­plices no crime. E diz-se assim, com a pa­lavra certa, porque, em­bora isso pa­reça ter es­ca­pado a Jo­a­quim Vi­eira, o fas­cismo sa­la­za­rista foi um crime. O que muita gente anda agora por aí a querer fazer es­quecer.




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