Os dias da Grécia
Falando de televisão, e da televisão portuguesa que nestas colunas é o tema natural, bem se pode dizer que os dias da passada semana podiam ter sido nela os dias de um grande clube de futebol, e não só, cujas entranhas foram sacudidos por espasmos de natureza e intensidade verdadeiramente raras. E a televisão, de harmonia com o que é seu hábito e sua vocação, falou abundantemente dessa crise havida no específico «mundo da bola», como é comum dizer-se quase carinhosamente, se crise se lhe pode chamar: pôs repórteres em campo, transmitiu opiniões, ampliou tempos dos programas dessa especialidade que é de facto a grande especialidade da televisão portuguesa. Poderiam ter sido, pois, na televisão portuguesa, os dias dessa crise e desse clube. Não foram. Porque lá para as lonjuras do Sudeste europeu, um país antigo e um povo mártir vivem uma página verdadeiramente exemplar da História contemporânea. Quem porventura ache que as palavras são demasiado fortes faça o favor de recuar um bom punhado de décadas até aos anos da Segunda Guerra Mundial e de lembrar: a Grécia a ser invadida pela Itália fascista de Mussolini (cujo retrato adornava a secretária de Salazar, recorde-se de passagem) e a resistir tão bravamente que só a intervenção das forças nazis de Hitler resolveram a questão; os anos da brutalíssima ocupação alemã marcada por assassínios em massa e espoliação intensa; uma guerra civil decorrente do desejo por parte do povo grego de aceder a uma verdadeira democracia e saldada por um desaire dessa mais que legítima aspiração; alguns anos de democracia formal interpolados pela sinistra «ditadura dos coronéis» entre 67 e Julho de 74; regresso ao poder formalmente democrático dos partidos representantes da burguesia alta e talvez média com a habitual contrapartida da opressão das camadas populares. Foi nos anos dessa governação que foi crescendo a dívida externa grega: a dívida que os poderes capitalistas/liberais da injustamente chamada União Europeia querem agora que seja paga pelos «sacrifícios» (entenda-se: pela redução à miséria) dos que mais trabalham e já menos ganham, embora sejam de facto os mais numerosos e por isso os que constituem o mais óbvio terreno de rapina.
Sob a superfície
É contra este povo martirizado e heróico que são disparadas agressões verbais e falsificações imbecis que a televisão portuguesa regista e quotidianamente distribui pelas nossas casas. Não falando já do senhor primeiro-ministro cuja estratégia é disfarçar a sua óbvia subserviência perante a «Europa» (palavra que neste contexto deve ser sempre escrita entre aspas, se não com a sombra de cruzes suásticas a espreitar em fundo) com a exibição de supostos bom-senso e realismo, nem lembrando a extraordinária vocação do senhor PR para o espectáculo público da sua limitada estatura, registem-se alguns momentos televisivos em que compatriotas nossos fazem prova de como podem ser feios, não-sei-quê e maus. Chega um e lembra que o salário mínimo na Grécia é mais elevado que em Portugal, sem se lembrar de que esse confronto exige a comparação dos preços num e noutro país. Chega outro e diz que os gregos «não pagam os impostos devidos» sem acrescentar quais gregos cometem essa feia acção. Chega outro e explica que a frota mercante grega arvora bandeira panamiana para escapar a impostos, mas não explicita quantos gregos são grandes armadores de navios mercantes e em que partidos votam eles, se porventura votam. Perante tudo isto e o muito mais que aqui não cabe, justifica-se dizer que nem é preciso admirar o actual governo grego e o partido de que ele emerge para estar ao lado do povo que o elegeu, que muito já sofreu e que porventura muito ainda virá a sofrer. Sob a superfície de diferenças de carácter político, e sem que as subestimemos, há lugar para qualquer coisa de prioritário: a solidariedade para com todos os que lutam na legítima defesa dos direitos violados. É um sentimento que galga as fronteiras e convoca uma tendencial unidade. De acordo com o apelo formulado num famoso Manifesto escrito há já muitos anos mas é preciso não esquecer.