Tempo de antena cultural

Manuel Augusto Araújo

Nos úl­timos tempos, os si­nais são bem mais an­tigos, de­cla­ra­ções de res­pon­sá­veis por áreas cul­tu­rais acen­tuam a ten­dência para ori­entar a cul­tura para um ho­ri­zonte pu­bli­ci­tário. O que an­te­ri­or­mente tinha um forte vín­culo com o saber, a trans­missão do saber e do saber fazer na cul­tura e na ci­ência, hoje são achas na fo­gueira da pro­moção. O fun­da­mental, o que in­te­ressa é vender, vender a qual­quer preço. Para quem detém poder na área da cul­tura, as ma­ni­fes­ta­ções cul­tu­rais são ins­tru­mentos de pro­moção pu­bli­ci­tária dos bens cul­tu­rais. Uma visão que não se dis­tingue da dos de­par­ta­mentos co­mer­ciais, do mar­ke­ting de qual­quer em­presa, actue ou não actue no campo da pro­dução de bens cul­tu­rais. Bi­e­nais de artes, fes­ti­vais li­te­rá­rios, co­ló­quios, ex­po­si­ções, lan­ça­mento de li­vros e discos, e o que a ima­gi­nação do mer­cado en­dro­minar, que se mul­ti­pli­quem não com qual­quer ob­jec­tivo cul­tural mas a bem da pro­moção pu­bli­ci­tária, da venda do «pro­duto» in­de­pen­den­te­mente do valor efec­tivo. A cul­tura é vista como um enorme circo ilu­mi­nado por um sol en­ga­nador em que a om­ni­pre­sente lin­guagem dos mer­cados es­vazia de sig­ni­fi­cado da cul­tura, do que é cul­tural na di­ver­si­dade da trans­missão e aqui­sição de sa­beres. O di­reito à cul­tura reduz-se ao di­reito dos con­su­mi­dores de es­co­lher um livro, um filme, ir a um con­certo, de vi­sitar mu­seus ou ex­po­si­ções de que perdeu o Norte nos ca­tá­logos de farta oferta em que de­li­be­ra­da­mente se con­funde o que é en­tre­te­ni­mento, pa­dro­ni­zado por in­dús­trias que ex­ploram um gosto médio sem es­pes­sura, que não obrigam nem in­cen­tivam qual­quer re­flexão, com as da cri­ação ar­tís­tica e cul­tural que pro­movem e in­cen­tivam a trans­missão e a pro­dução de co­nhe­ci­mento.

No mesmo plano co­loca-se ac­ti­vi­dades que têm por ob­jec­tivo pri­meiro o gerar lucro fi­nan­ceiro com as que podem obter lu­cros fi­nan­ceiros mas que não são re­a­li­zadas tendo nesse ob­jec­tivo o seu motor prin­cipal. Não se pode exigir que o Filme do De­sas­sos­sego tenha o mesmo êxito de bi­lhe­teira de um Pátio das Can­tigas re­vi­si­tado. Ou que uma ópera de Fran­cisco An­tónio de Al­meida ar­raste as mul­ti­dões do Fes­tival do Su­do­este. Ou que a re­e­dição de O Delfim de Car­doso Pires tenha o êxito edi­to­rial de O Amor é outra Coisa da Re­belo Pinto. A pri­meira das muitas causas de não poder haver qual­quer ex­pec­ta­tiva desse gé­nero é a de­missão do Es­tado em pro­mover a cul­tura, no­me­a­da­mente através do ser­viço pú­blico de rádio e te­le­visão, meios que tinha a obri­gação de uti­lizar. Em linha com essa de­missão, estão os cri­té­rios de atri­buição de sub­sí­dios à cri­ação ar­tís­tica e cul­tural que de­ve­riam pri­vi­le­giar a des­cen­tra­li­zação cul­tural e não os de uma su­posta va­lo­ri­zação da pro­dução ar­tís­tica na­ci­onal nos mer­cados in­ter­na­ci­o­nais com cri­té­rios mais que du­vi­dosos. Veja-se o apoio con­ce­dido à dupla João Louro/​Maria do Corral, que se ins­crevem na grande farsa que é a arte con­tem­po­rânea, que tanto des­lum­bram Bar­reto Xa­vier e no apoio re­cu­sado à XVII Festa do Te­atro/​Fes­tival In­ter­na­ci­onal de Te­atro de Se­túbal, com sig­ni­fi­ca­tivas di­fe­renças de custos em euros, a bi­tola da Se­cre­taria de Es­tado da Cul­tura, para se per­ceber os não de­síg­nios cul­tu­rais da go­ver­nação.

Mer­cado e pro­moção

As pa­la­vras-chave dessas po­lí­ticas ditas cul­tu­rais são mer­cado e pro­moção. Atra­vessam todos os dis­cursos da má­quina cul­tural mon­tada por este Go­verno, não se deve es­quecer que o res­pon­sável má­ximo pela Cul­tura é o pri­meiro-mi­nistro. O que exigem dos es­cri­tores, ci­ne­astas, en­ce­na­dores, ar­tistas vi­suais ou de te­atro, mú­sicos, de todo o uni­verso de cri­ação ar­tís­tica e cul­tural é que não li­mitem a sua acção à pro­dução ar­tís­tica e cul­tural mas que a pro­lon­guem no tra­balho de pro­moção das suas obras. In­si­nuam des­pu­do­ra­da­mente que essa é mesmo um campo de tra­balho que devem pri­vi­le­giar. Na prá­tica as po­lí­ticas cul­tu­rais do Go­verno são po­lí­ticas pu­bli­ci­tá­rias em que a ava­li­ação do tra­balho ar­tís­tico e cul­tural é sub­si­diária dos re­sul­tados eco­nó­micos que ob­te­nham. Que esse deve ser o tra­balho fun­da­mental dos ar­tistas e das ac­ções cul­tu­rais é o que está sub­ja­cente nos dis­cursos e en­tre­vistas dos agentes go­ver­na­men­tais da cul­tura.

Há uma fé ili­mi­tada que todas as ac­ções de pro­moção, desde que esse seja o ob­jec­tivo pri­mor­dial, são boas, não in­te­res­sando se são ex­ce­lentes ou me­dío­cres. Todos sabem, menos os go­ver­nantes e seus agentes, que pro­mover a me­di­o­cri­dade cul­tural tem o efeito de am­pli­ficar a me­di­o­cri­dade. Le­gi­timar a me­di­o­cri­dade até se atingir o ponto de não re­torno da au­sência, do vazio cul­tural, no ani­qui­la­mento da qua­li­dade, em­pur­rando os ci­da­dãos para a ili­te­racia cul­tural, o que os am­puta da ca­pa­ci­dade do exer­cício da ci­da­dania.

A afir­mação e a con­vicção de que «a cul­tura» gera lucro, o ex-li­bris da Eco­nomia da Cul­tura e dos enormes equí­vocos das in­dús­trias cul­tu­rais e cri­a­tivas, onde se con­fundem, sem ino­cência, ac­ti­vi­dades in­dus­tri­a­li­zadas de en­tre­te­ni­mento com ac­ti­vi­dades sem lucro fi­nan­ceiro. Le­gi­tima os cri­té­rios da eco­nomia do di­nheiro, os in­te­resses dos pa­tro­ci­na­dores a con­ta­bi­li­dade dos pú­blicos. É cho­cante ver os tempos de an­tena con­ce­didos pelos ca­nais ditos de ser­viço pú­blico aos fes­ti­vais es­ti­vais de mú­sicas pronta a ouvir e deitar fora e por ta­bela a pu­bli­ci­dade gra­tuita ob­tida pelos pro­mo­tores e pa­tro­ci­na­dores e o rui­doso si­lêncio em re­lação a ini­ci­a­tivas cul­tu­rais re­le­vantes que de­correm pa­ra­le­la­mente.

A pe­gada cul­tural deste Go­verno é a exal­tação do mer­cado fi­nan­ceiro que deixa marcas, o que não des­res­pon­sa­bi­liza os ar­tistas, os pro­du­tores cul­tu­rais que con­correm para esse es­tado de coisas ac­tual. De­grada a cul­tura nos seus múl­ti­plos sen­tidos de afir­mação da con­dição hu­mana e da trans­for­mação da vida o que não é com­pa­gi­nável com a se­dução pelo di­nheiro. Há que des­co­di­ficar a lin­guagem do mer­cado, de­fender a di­mensão sim­bó­lica efec­tiva da pro­dução cul­tural como um pro­cesso de co­nhe­ci­mento, um di­reito de ci­da­dania que o Es­tado, Poder Cen­tral e Local têm que pro­mover. Em tempo de elei­ções é de su­bli­nhar que quanto mais cultos forem os ci­da­dãos mais es­cla­re­cida serão as suas es­co­lhas.

 



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