Turquia, a nossa grande raiva

António Santos

De todos lu­gares do mundo para fazer ex­plodir uma bomba, uma ma­ni­fes­tação pela paz é, por ven­tura, o mais sór­dido. Talvez por isso seja ainda tão di­fícil com­pre­ender o ine­nar­rável ma­ni­festo de de­su­ma­ni­dade que, este sá­bado, ceifou pelo menos 130 vidas em An­cara, na Tur­quia. De­pois, atin­giram-nos, per­plexos, aquelas ima­gens bru­tais da po­lícia a bater nas fa­mí­lias que cho­ravam os mortos. Li­geira e sem mais per­guntas, a co­mu­ni­cação so­cial do­mi­nante tratou de abre­viar  con­clu­sões: «o maior aten­tado ter­ro­rista da Tur­quia mo­derna teve a as­si­na­tura do Es­tado Is­lâ­mico», re­pe­tiram, «as­sunto en­cer­rado. Já cá não mora o Charlie». Se, por acaso, se ti­vessem per­gun­tado «quem be­ne­fi­ciou com este ataque», te­riam sido obri­gados a lem­brar-se que, afinal, não foi este, mas ou­tros, como o Mas­sacre de Maraş, em 1978, o aten­tado mais mor­tí­fero da Tur­quia mo­derna. Nessa oca­sião, foram pre­cisos quase 30 anos para se apurar a au­toria do go­verno, com a co­la­bo­ração da CIA, na ma­tança de quase 200 mi­li­tantes de es­querda. Seja como for, há coisas que nunca com­pre­en­de­remos, que não podem ser hu­ma­na­mente com­pre­en­didas. Talvez por isso, Adorno tenha es­crito que de­pois de Aus­chwitz a po­esia se tor­nara «im­pos­sível». Des­viar o olhar é, con­tudo, o pri­vi­légio dos es­pec­ta­dores e Adorno podia até dar-se ao luxo de não ser prá­tico, mas a po­esia tem jus­ta­mente o mé­rito de des­vendar a es­sência dos ce­ná­rios in­com­pre­en­sí­veis. Sir­vamo-nos pois, dos versos do poeta e co­mu­nista Turco, Nâzım Hikmet. (Hás-de saber morrer pelos ho­mens/​E além disso por ho­mens que se ca­lhar nunca viste/​E além disso sem que nin­guém te obrigue a fazê-lo/​E além disso sa­bendo que a coisa mais real e bela é/​Viver)

«Es­tado pro­fundo»

Para en­tender o ataque de An­cara há que olhar para o mas­sacre de Suruç que, em Julho pas­sado, fez 33 mortos. Então, em vés­pera de elei­ções, o go­verno também culpou o Es­tado Is­lâ­mico, mas foi contra a opo­sição turca e curda que dis­parou, pren­dendo mais de 600 co­mu­nistas e sin­di­ca­listas e ma­tando cen­tenas de guer­ri­lheiros do Par­tido dos Tra­ba­lha­dores do Cur­distão (PKK). Para a co­mu­ni­cação so­cial, tratou-se sim­ples­mente de «ope­ra­ções anti-ter­ro­ristas». (Ó luz dos meus olhos, luz dos meus olhos/​os no­ti­ciá­rios estão outra vez a mentir/​para que o saldo dos ex­plo­ra­dores feche com cem por cento de lucro./​Mas quem voltou do ban­quete do Anjo da Morte/​voltou com a sen­tença...)

Não é fácil, por isso, saber se na raiz do mas­sacre es­teve o go­verno, o Es­tado Is­lâ­mico ou o cha­mado 'Es­tado pro­fundo' porque os três se tor­naram num só: o Es­tado Is­lâ­mico vende pe­tróleo sírio ao Es­tado turco; o go­verno já não so­bre­vive sem o apa­relho ter­ro­rista do 'Es­tado pro­fundo' que, por sua vez, di­rige o ter­ro­rismo is­la­mita na pro­vo­cação de um Es­tado de sítio per­ma­nente.  (Ambos sa­bemos, meu amor/ eles en­si­naram-nos/ a ficar com fome, com frio/​o can­saço de morte/​e a estar se­pa­rados./​Ainda não fomos obri­gados a matar/​e não acon­teceu sermos mortos./​Ambos sa­bemos, meu amor/​nós po­demos en­sinar/​a lutar pelo nosso povo/​e a amar/​a cada dia mais in­ten­sa­mente/​um pouco me­lhor)

A vo­la­ti­li­dade po­lí­tica da Tur­quia re­vela, como uma ra­di­o­grafia, as frac­turas do es­que­leto na­ci­onal. A ver­tigem re­pres­siva de Er­dogan é o re­flexo duplo de um Es­tado ca­pi­ta­lista in­capaz de apa­zi­guar os an­seios do seu povo e de uma cada vez mais tensa re­lação de forças entre o im­pe­ri­a­lismo es­tado-uni­dense e as po­tên­cias re­gi­o­nais. Trata-se de um quadro comum a toda a re­gião que, no mo­saico turco en­contra ca­rac­te­rís­ticas sub­jec­tivas únicas e sig­ni­fi­cantes va­ri­a­ções quan­ti­ta­tivas: saído das elei­ções de Julho numa si­tu­ação pre­cária, Er­dogan con­vocou novas elei­ções para dia 1 de No­vembro com­pre­en­dendo que as am­bi­ções do emer­gente ca­pital turco exigem virar o Es­tado em di­recção ao fas­cismo. (O Ou­tono está prestes a acabar /A terra vai en­trar num sono pro­fundo logo, logo/​E nós vamos passar mais um in­verno:/​a aquecer-nos com o fogo da nossa es­pe­rança sa­grada/​e com a nossa grande raiva...)

Se, in­ter­na­mente, o Es­tado turco ganha con­tornos fas­ci­zantes, ex­ter­na­mente é ainda mais vi­o­lento na pro­cura de uma re­de­fi­nição ge­o­es­tra­té­gica de corte oto­mano. Tendo-se as­su­mido como um eixo es­tra­té­gico na de­ses­ta­bi­li­zação da Síria, os re­centes re­tro­cessos do im­pe­ri­a­lismo na­quele país acar­retam sé­rias con­sequên­cias in­ternas para a Tur­quia. Como re­corda, num co­mu­ni­cado de dez de Ou­tubro, o Par­tido Co­mu­nista, Tur­quia, «en­quanto a po­lícia turca dá asilo aos as­sas­sinos em fuga do Es­tado Is­lâ­mico, o gang no poder (se­gui­dores da sharia do AKP) ataca, re­ceoso de uma der­rota». (Eles são ini­migos da es­pe­rança, meu amor/​são ini­migos da água cor­rente/​da ár­vore que fru­ti­fica/​da vida que se de­sen­volve./​Porque a morte ca­rimbou-lhes a testa/ dentes que apo­drecem, carne que se de­te­riora/​serão des­truídos e nunca mais vol­tarão/​E sem dú­vida, meu amor, sem dú­vida/​a li­ber­dade ca­mi­nhará li­vre­mente neste país lindo/​com a sua me­lhor roupa:/​o uni­forme de ope­rário...)




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