Comentário

Ligado à máquina

João Ferreira

Com so­bran­ceria de re­corte co­lo­nial, o so­ci­a­lista francês Pi­erre Mos­co­vici, co­mis­sário da UE para os As­suntos Eco­nó­micos e Fi­nan­ceiros, disse acerca da missão de pe­ritos que a Co­missão Eu­ro­peia mandou a Lisboa: vão para «ne­go­ciar um Or­ça­mento do Es­tado que es­teja em co­e­rência com as re­gras eu­ro­peias e os com­pro­missos as­su­midos por Por­tugal».

Mos­co­vici as­sinou com Valdis Dom­brovskis uma carta en­viada na se­mana pas­sada ao go­verno por­tu­guês. Dom­brovskis, co­lega de Mos­co­vici na Co­missão Eu­ro­peia, co­mis­sário res­pon­sável pelo euro, letão nas­cido na então União So­vié­tica, foi pri­meiro-mi­nistro da Le­tónia, tendo em­pre­en­dido ra­di­cais re­formas ne­o­li­be­rais que abriram portas a uma pro­funda crise eco­nó­mica e so­cial no seu país. Nas pa­la­vras de Mos­co­vici, a carta dos dois co­mis­sá­rios «levou a cla­ri­fi­ca­ções e com­pro­missos su­ple­men­tares [do go­verno por­tu­guês] que evi­taram que a Co­missão ti­vesse que pedir um novo pro­jecto de or­ça­mento».

E assim es­tamos.

Diz o ar­tigo 161.º da Cons­ti­tuição da Re­pú­blica Por­tu­guesa que com­pete à As­sem­bleia da Re­pú­blica «aprovar as leis das grandes op­ções dos planos na­ci­o­nais e o Or­ça­mento do Es­tado». Diz o ar­tigo 164.º que «é da ex­clu­siva com­pe­tência da As­sem­bleia da Re­pú­blica le­gislar sobre [o] re­gime geral de ela­bo­ração e or­ga­ni­zação dos or­ça­mentos do Es­tado». E diz a carta de Mos­co­vici e Dom­brovskis que ou o or­ça­mento é como manda a UE ou nada feito; ou o or­ça­mento se cose com as li­nhas de Bru­xelas e Berlim ou o di­rec­tório que manda na UE re­jeita-o mesmo antes da As­sem­bleia da Re­pú­blica o dis­cutir.

Nada de novo. Es­tamos pe­rante a im­ple­men­tação prá­tica do de­sig­nado Se­mestre Eu­ropeu, em vigor desde 2011. Apenas por uma questão de re­dun­dância este pro­ce­di­mento não se aplicou desde essa al­tura a Por­tugal – porque o País es­tava sob a bota de uma in­ter­venção es­tran­geira que tinha os mesmos efeitos prá­ticos.

 

*

 

Os bu­ro­cratas de Bru­xelas (e quem manda neles) detêm todo um ar­senal de per­su­asão, que vai da ameaça de san­ções à mão­zinha pre­ciosa das cé­le­bres agên­cias de ra­ting.

A este res­peito, vale a pena atentar numa pe­quena no­tícia dada à es­tampa pelo Diário de No­tí­cias, na sua edição de 29/​01/​2016, que ti­tu­lava assim: «Por­tugal está nas mãos de uma em­presa ca­na­diana». A no­tícia re­feria-se à agência de ra­ting DBRS, se­diada em To­ronto, da qual, se­gundo o DN, de­pende a con­ti­nu­ação do fi­nan­ci­a­mento do Es­tado e da banca na­ci­onal. A his­tória conta-se assim: Por­tugal (o Te­souro e, por ar­rasto, em­presas e bancos) con­se­guem fi­nan­ciar-se nos mer­cados a taxas de juro com­por­tá­veis porque o Banco Cen­tral Eu­ropeu (BCE) aceita os tí­tulos da dí­vida pú­blica que os bancos lhe pre­tendam vender. Mas, para que isto acon­teça, o BCE exige a benção de pelo menos uma das quatro agên­cias de ra­ting que erigiu em donas e se­nhoras da «qua­li­dade do cré­dito» de na­ções so­be­ranas: para além da DBRS, a Fitch, a Mo­ody’s e a S&P – nomes bem nossos co­nhe­cidos. As três úl­timas (es­ta­du­ni­denses) con­ti­nuam a clas­si­ficar a nossa dí­vida como «lixo», pelo que só a DBRS, nas pa­la­vras do DN, «mantém a Re­pú­blica li­gada à má­quina de fazer di­nheiro de Frank­furt». Mas mesmo esta, que clas­si­fica a dí­vida por­tu­guesa apenas um nível acima do «lixo», já avisou estar pre­o­cu­pada com os «riscos» das ele­vadas ne­ces­si­dades de fi­nan­ci­a­mento na­ci­o­nais.

E eis que su­bi­ta­mente algo nos soa de­ma­si­a­da­mente pa­re­cido com os anos de 2010-2011: uma certa re­tó­rica, uns mesmos certos pro­ta­go­nistas.

Quem não per­cebe ou quem não quer per­ceber a im­por­tância do País se li­bertar da sub­missão ao euro, aí tem, de­pois de tudo o que se passou na Grécia, mais uma ví­vida de­mons­tração. Sem essa li­ber­tação, o País nunca se li­ber­tará ver­da­dei­ra­mente da chan­tagem, das in­tro­mis­sões, das in­ge­rên­cias do grande ca­pital fi­nan­ceiro e dos seus re­pre­sen­tantes po­lí­ticos.

Se a sim­ples pers­pec­tiva de impor um freio à po­lí­tica de ex­plo­ração e de saque aos tra­ba­lha­dores e ao povo por­tu­guês, im­pondo a de­vo­lução de parte do que lhes foi rou­bado nos úl­timos anos, de­sen­ca­deia de ime­diato as ame­aças de «des­ligar a má­quina», ca­berá per­guntar: o que su­ce­deria caso o País de­ci­disse de forma so­be­rana levar por di­ante im­pres­cin­dí­veis po­lí­ticas de jus­tiça so­cial e de pro­moção do seu de­sen­vol­vi­mento, de al­cance ne­ces­sa­ri­a­mente mais amplo e pro­fundo?

O pro­blema não é a má­quina de Frank­furt poder vir a ser algum dia des­li­gada. O ver­da­deiro pro­blema é o País não se cau­telar e não tomar, desde já, as me­didas ne­ces­sá­rias para im­pedir uma ar­ras­tada e pe­nosa so­bre­vi­vência, «li­gado à má­quina»...

 



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