A estrada da morte
A televisão deu-nos a tristíssima notícia (e como ela, a televisão portuguesa, parece gostar delas, das notícias tristíssimas!): doze portugueses emigrados tinham morrido a meio da noite, numa estrada de França, quando vinham a caminho de Portugal para aqui celebrarem a Páscoa junto de famílias, de amigos, de lugares para onde a saudade chamava. Vinham da Suíça, eram treze, número considerado aziago, mas o azar que os vitimou não tinha a ver com crendices antigas mas sim com as razões ou sem-razões muito reais e concretas que os haviam levado a empreender uma viagem longa em más condições de segurança. Sabe-se que os treze viajavam numa carrinha com lotação para seis pessoas, que seguiam dia e noite sem adequadas pausas para descanso, que tinham escolhido uma estrada difícil mas sem o custo de portagens que uma autoestrada implicaria. Quanto ao condutor, sabemos que era um jovem de dezanove anos sem habilitações adequadas aquele tipo de veículo e de condução, mas é fácil imaginar que havia sido o condutor possível para uma aventura pequena mas muito desejada, também muito arriscada. Foi o único sobrevivente da desgraça, mas não podemos imaginar que género de difícil sobrevivência terá ao longo de anos, de toda a existência que lhe resta e que poderá ser longa, com a memória das doze mortes que resultaram talvez do seu cansaço, porventura de alguma inexperiência e de alguma audácia excessiva, saídas afinal das suas mãos ainda tão jovens e já tão duramente marcadas.
Necessário, urgente, justo
Podemos, é claro, fazer o que tantas vezes é feito nas mais variadas situações: responsabilizar as vítimas pelo que lhes acontece. Neste caso, perguntarmos porque é que aquele punhado de emigrantes portugueses não escolheu, usando de adequada prudência, viajar em três carros confiáveis, de preferência topo-de-gama, conduzidos por profissionais que decerto o fariam desde que bem pagos. Ou optar por outro meio de transporte, avião ou autocarro que oferecesse garantias de segurança. A resposta, porém, não é difícil de adivinhar: porque um dia haviam partido para a Suíça não apenas para escaparem à penúria que os rondava ou que até já os teria capturado, mas também com o sonho de uma vida confortável com os filhos a estudarem e a conseguirem um emprego bem pago, até com a miragem da construção de uma bonita casa em Portugal que substituísse a velha casa de onde talvez tivessem partido. Não se diga que era um projecto excessivo: futuro para os filhos, presente sustentável para os pais, tecto confortável, velhice com segurança, nada disto configura alguma ambição desrazoada e é aliás um cenário vivido pelas camadas sociais que não se sentem obrigadas a emigrar porque se vão governando muito bem por cá, felizmente para elas, infelizmente para os que indirectamente lhes vão assegurando a qualidade de vida. Não seria, pois, um projecto excessivo, mas era um projecto exigente, e uma das prováveis ou indispensáveis exigências era a de ganhar o melhor salário possível e dele gastar o mínimo, arrecadar o máximo, para que o sonho mantivesse alguma consistência. Para isso haviam atravessado a fronteira, dito adeus a familiares e lugares a caminho de um futuro incerto mas na certeza de um presente que se tornara insuportável. Nunca teriam ouvido falar de uma estrada francesa a que chamavam «da morte» e que aliás decerto milhares de outros percorreram dela saindo incólumes. O que eles também não sabiam, como o não sabem muitos outros que nunca foram vítimas de acidentes trágicos, é que muitas vezes a própria emigração é, quando forçada pelas circunstâncias, uma espécie de outra «estrada da morte» onde morre o mais que legítimo direito de sobreviver no país em que se nasceu e aí ter filhos, tecto, conforto mínimo e esperança. Sabemo-lo muitos de nós. E sabemos que é necessário e urgente fechar essa outra estrada, não apenas para que cesse alguma hecatombe de portugueses em estradas francesas mas sobretudo porque os que morrem nos fazem falta. E por isso é necessário e urgente, além de justo, que haja lugar aqui para cada um deles.