Porque lembrar é preciso

Correia da Fonseca

Já aqui se terá as­si­na­lado, como aliás se im­punha, que a RTP pa­rece ter-se aper­ce­bido, enfim, de que na Eu­ropa se faz te­le­visão e de que, já que somos eu­ro­peus (em­bora em muitos as­pectos não tanto quanto seria de­se­jável), será de bom senso e de bom gosto que aos te­les­pec­ta­dores por­tu­gueses sejam dadas a ver pro­du­ções eu­ro­peias. Com apa­rentes cau­telas, a tra­di­ci­onal conta-peso-e-me­dida, e sem que essa li­geira gui­nada de leme im­plique con­cor­rência com as pro­du­ções na­ci­o­nais, o que aliás se en­tende e aceita, foram en­ca­mi­nhadas para trans­missão pela RTP2, canal que li­te­ral­mente dá menos nas vistas, pro­du­ções ita­li­anas, di­na­mar­quesas, bri­tâ­nicas, fran­cesas. Assim co­meçou a per­ceber-se mais cla­ra­mente que o mundo da pro­dução te­le­vi­siva não se ex­prime apenas no in­glês «made in USA» e no «por­tu­guês com açúcar» do Brasil. Não se cairá no exa­gero de dizer que essa per­cepção, quando ocorreu, foi um im­por­tante passo em frente no pro­cesso ci­vi­li­za­ci­onal do te­les­pec­tador por­tu­guês que sempre será um tra­jecto di­fícil: ha­bi­tu­ados à dose quo­ti­diana de te­le­no­velas, a al­guns pro­gramas de humor cuja co­mi­ci­dade nos deixa pro­fun­da­mente amar­gu­rados ou à exi­bição quase cir­cense de reais ou su­postos ta­lentos na­ci­o­nais de idades vá­rias, a ge­ne­ra­li­dade dos con­su­mi­dores da te­le­visão dis­tri­buída ao do­mi­cílio pela RTP, pela SIC e pela TVI ainda não terão feito a plena des­co­berta de que o já velho «se­gundo canal» existe e, so­bre­tudo, que vale a pena. Emerge, porém, a es­pe­rança de que esse ca­minho não de­sem­boque em re­gresso e que a «2» não se cris­ta­lize como uma es­pécie de clube com frequência es­cassa e pouco nu­me­rosa. Risco que, uma vez ven­cido e sendo as coisas o que são, não será uma vi­tória mi­nús­cula.

Talvez uma dú­vida

Temos, pois, que em es­cala muito mo­desta e por­ven­tura de facto in­sig­ni­fi­cante, este acesso do te­les­pec­tador por­tu­guês a te­le­pro­du­ções eu­ro­peias pode ser apesar de tudo pro­me­tedor. De qual­quer modo, não será de mais re­gistar a pre­sença na «2» de uma série que, de­vol­vendo-nos aos pri­meiros anos 40 do sé­culo pas­sado, pode in­duzir-nos a re­fle­xões pelo menos in­te­res­santes acerca da ac­tu­a­li­dade di­fícil que vi­vemos. A série in­ti­tula-se «Uma Al­deia Fran­cesa», conta-nos o quo­ti­diano dra­má­tico de uma pe­quena po­vo­ação ocu­pada pelas tropas alemãs entre 40 e 45. E será talvez in­te­res­sante, por­ven­tura até fe­cundo, per­gun­tarmo-nos acerca da mo­ti­vação que levou fran­ceses a pro­du­zirem nos pri­meiros anos deste mi­lénio, isto é, mais de ses­senta anos de­pois do fim da Se­gunda Guerra Mun­dial e da Li­ber­tação, uma série que vem re­cordar as bru­ta­li­dades alemãs du­rante a ocu­pação, a bai­xeza do co­la­bo­ra­ci­o­nismo com o in­vasor e até, ainda que apenas de pas­sagem, o pro­ta­go­nismo dos co­mu­nistas na re­sis­tência ao ocu­pante. Num tempo em que o pre­si­dente Hol­lande vai a Berlim bei­jocar An­gela Merkel, em que a he­ge­monia ger­mâ­nica oprime de facto muitos ou­tros povos eu­ro­peus e em que um «diktak» alemão im­pregna a ge­ne­ra­li­dade da vida po­lí­tica na Eu­ropa, os epi­só­dios de «Uma Al­deia Fran­cesa» podem abrir ca­minho à dú­vida sobre se a ar­ro­gância alemã que foi ele­mento ge­né­tico do na­zismo se dis­sipou de­fi­ni­ti­va­mente com a der­rota, li­ber­tando os ale­mães para uma co­e­xis­tência sau­dável e pelo menos ten­den­ci­al­mente fra­terna com os ou­tros povos eu­ro­peus, ou se é algo de cró­nico e inex­tir­pável, hi­pó­tese pes­si­mista que con­tudo pa­rece en­con­trar mo­tivos de apa­rente con­fir­mação a cada passo. Como bem se com­pre­en­derá, é neste quadro que «Uma Al­deia Fran­cesa» surge como con­tri­buto di­dác­tico para al­guma even­tual ig­no­rância ou sa­lutar para al­guma pos­sível am­nésia. A questão é que lem­brar é pre­ciso. Para en­tender, para optar, para agir. Para es­ta­be­lecer di­ag­nós­ticos cor­rectos. Para, se ne­ces­sário, acordar a re­acção sa­lutar das re­cusas.




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