Bernie Sanders, o que faz <br>cantar o galo?

António Santos

Há dois anos, a coroação de Hillary Clinton como o nome do Partido Democrata às eleições presidenciais estado-unidenses parecia uma evidência do destino. A possibilidade de um candidato assumidamente «socialista» e portador de um programa progressista ser eleito presidente no principal vespeiro global do anti-comunismo mereceria, há não muitos meses, o escárnio de qualquer bom analista político da classe dominante. Mas após sete vitórias consecutivas nas primárias dos estados de Idaho, Utah, Alasca, Havai, Washington, Wisconsin e Wyoming (este artigo foi escrito antes de serem conhecidos os resultados de Nova Iorque) a candidatura de Bernie Sanders assume-se como um adversário formidável. O significado do fenómeno «Bernie», contudo, ultrapassa largamente as delimitações eleitorais.

Com 1931 delegados ainda por distribuir, a vantagem de Clinton, com 1758 representantes, sobre Sanders, com 1076, vem registando uma erosão que desafia as regras do jogo das eleições nos EUA. Do lado da secretária de Estado de Obama erguem-se em peso os barões do partido: 469 «super-delegados» nomeados pela própria estrutura partidária contra apenas 31 alinhados com o senador do Vermont. A mesma tendência está espelhada no financiamento de ambos os candidatos: o maior patrocinador de Clinton é nada mais nada menos do que o mefistofélico especulador e golpista George Soros, que declarou uma doação de sete milhões de dólares; já no campo de Sanders, a maior parte do dinheiro provém de doações individuais abaixo dos 200 dólares. Surpreendentemente, a soma angariada por Sanders, o único que não aceita contribuições anónimas de grandes grupos económicos através de «superpacs», é apenas 30 por cento inferior ao orçamento de Clinton. Como é possível?

Termómetro de potencialidades

Mais de 18 mil pessoas nos Bronx, 30 mil em Manhattan, 28 mil em Brooklyn. A campanha de Sanders concentrou, na última semana, multidões dos cinco quadrantes da Cidade de Nova Iorque sob a divisa de uma «revolução política contra a classe dos bilionários». Hillary Clinton pode até conseguir mais votos do que Sanders, mas não ousaria tentar encher o Washington Square Park. Essa é a diferença crucial entre as duas candidaturas democratas e o agente que dá sentido histórico ao que, de outra forma, poderia cingir-se à dimensão de um inócuo epifenómeno eleitoral.

A campanha eleitoral de massas protagonizada por Bernie Sanders é, em primeiro lugar, uma expressão eleitoral da frustração da classe trabalhadora estado-unidense com as políticas anti-populares perseguidas, década após década, pelo Partido Democrata e pelo seu congénere Republicano. O esgotamento da actual configuração partidária do sistema político estado-unidense, consequência da própria crise do sistema capitalista, batendo de frente com a natureza anti-democrática de um bipartidarismo intransigente e fechado, está a transbordar descontroladamente dos dois partidos da burguesia. À direita, este fenómeno leva o nome de excêntricos, fanáticos religiosos e pequenos Mussolinis. À esquerda, é Bernie Sanders que congrega os pendões de várias lutas antigas da classe trabalhadora, do Occupy Wallstreet à luta pelo salário mínimo de 15 dólares por hora, passando pelo movimento anti-racista Black Lives Matter e pelos sectores mais avançados do sindicalismo de classe. Dando corpo a esta ideia, Sanders juntou-se, na segunda-feira, ao piquete de greve dos trabalhadores da empresa de telecomunicações Verizon.

Um risco demasiado alto

A energia contagiante de Bernie Sanders já demonstrou as potencialidades da esquerda nos EUA. Com um programa (naquele contexto) progressista, não é a voz rouca de Sanders que explica a sua popularidade, mas o facto de propor soluções claras para problemas que todos os trabalhadores sentem: as desigualdades sociais, a ausência de sistemas de saúde e de educação universais, públicos e gratuitos, a falta de direitos e o racismo.

Neste momento, o problema da candidatura de Sanders não é tanto o facto de não ser verdadeiramente socialista, nem as contradições de que não se consegue livrar nas suas posições internacionais. A questão é que Sanders prometeu várias vezes que, caso não ganhe a nomeação, irá apoiar Hillary Clinton, queimando toda a energia e esperança acumulada na fogueira da velha máquina de cooptação democrata. A questão não é, portanto, se Sanders ganha ou perde a nomeação, mas sim o que faz com o movimento de massas à sua volta e que necessita desesperadamente de uma organização independente e sem dívidas para com o Partido Democrata. Seria ingénuo, por outro lado, crer que tudo isto depende da figura de Sanders: não é o cantar do galo que faz nascer o sol. É o sol que faz cantar o galo.

 



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