Este dia de Abril

Correia da Fonseca

Era pre­ciso es­co­lher, mas é pre­ciso re­gistar que houve por onde fazer essa es­colha entre di­versos pro­gramas que di­recta ou in­di­rec­ta­mente ce­le­bravam Abril, o que dadas a tra­dição e as cir­cuns­tân­cias quase é caso para acção de graças e laus­pe­rene: a ce­le­bração do 25 de abril de 74 es­teve em di­versos ca­nais da te­le­visão por­tu­guesa, menos nos aces­sí­veis a qual­quer te­les­pec­tador e mais nos dis­tri­buídos por cabo contra pa­ga­mento, mas em todos. O ha­bi­tual des­file na Ave­nida da Li­ber­dade con­ti­nuou a não atrair re­por­ta­gens re­ve­la­doras da sua di­mensão, os jor­na­listas que o vi­sitam pre­ferem quase sempre as en­tre­vistas muito breves com Je­ró­nimo de Sousa ou com anó­nimos su­pos­ta­mente ca­rac­te­ri­zados por qual­quer pe­cu­li­a­ri­dade. Mas, para além da co­ber­tura da sessão so­lene na As­sem­bleia da Re­pú­blica com a ali­ci­ante su­ple­mentar de vermos o se­nhor pro­fessor Ca­vaco fi­nal­mente re­me­tido para uma das ga­le­rias, pu­demos as­sistir às ho­me­na­gens a Sal­gueiro Maia e a Ma­nuel Alegre, a um pro­grama acerca das mu­lheres que re­sis­tiram na clan­des­ti­ni­dade, a um outro cen­trado sobre a fi­gura de José Afonso, a uma re­vi­sita à ac­ti­vi­dade da ARA-Acção Re­vo­lu­ci­o­nária Ar­mada, a uma en­tre­vista a Edu­ardo Lou­renço. Quanto à ho­me­nagem a Ma­nuel Alegre, cuja jus­teza ob­vi­a­mente não se dis­cute, convém lem­brar que a po­esia por­tu­guesa de re­sis­tência an­ti­fas­cista contou com ou­tros nomes que, porque sempre omi­tidos, pa­rece es­tarem a ser em­pur­rados para o es­que­ci­mento apesar de serem muitos e de ex­ce­lente qua­li­dade li­te­rária. Em ver­dade, é im­pe­rioso e ur­gente que a ten­dência seja que­brada, e o cum­pri­mento eficaz dessa ta­refa de au­tên­tico in­te­resse cul­tural e his­tó­rico está à me­dida dos de­veres e ca­pa­ci­dades da RTP. O es­tí­mulo para a exe­cução desse tra­balho pode cons­ti­tuir uma opor­tu­ni­dade, se não um dever, para o novo mi­nistro da Cul­tura, de quem de­pende for­mal­mente o sector pú­blico da co­mu­ni­cação so­cial.

O preço

Não se trata de es­co­lher, entre tudo quanto se viu e ouviu, o que terá sido mais im­por­tante, sig­ni­fi­ca­tivo ou es­cla­re­cedor, o que aliás podia ser de uma di­fi­cul­dade di­fícil de transpor, mas po­derá de­certo re­gistar-se que, no de­curso de uma con­versa ha­vida num desses pro­gramas com Vasco Lou­renço, este re­feriu que Spí­nola obrigou a que, como con­dição para que acei­tasse en­ca­beçar a vi­tória al­can­çada pelo Mo­vi­mento das Forças Ar­madas, fosse eli­mi­nado do seu pro­grama o re­co­nhe­ci­mento do di­reito à au­to­de­ter­mi­nação dos povos das co­ló­nias. E mais disse Vasco Lou­renço: que dessa su­pressão re­sultou o pros­se­gui­mento da guerra co­lo­nial nas suas três frentes e que esses meses de com­bates já sem sen­tido, for­çados pela ar­ro­gância de um ge­neral am­bi­cioso, ti­veram o preço de cerca de qua­tro­centos mi­li­tares por­tu­gueses mortos. É claro que há outra ma­neira de o di­zermos: que An­tónio Spí­nola, ge­neral ata­fu­lhado de auto-es­tima, de cur­rí­culo an­te­rior mar­cado pela pre­sença como ob­ser­vador ao lado das tropas nazis na in­vasão da URSS, or­na­men­tado de mo­nó­culo à prus­siana, forçou se­manas de guerra que ma­taram inu­til­mente perto de qua­tro­centos por­tu­gueses. Cabe lem­brar que, al­guns meses de­pois, Spí­nola tentou um golpe que pa­ra­li­sasse o per­curso de Abril, causou então a morte de mais al­gumas vidas por­tu­guesas e fugiu com ma­te­rial mi­litar rou­bado para pro­curar apoio na Es­panha de Fran­cisco Franco. E lem­brar mais: que, não obs­tante tudo isto e algo mais (de­sig­na­da­mente as suas ten­ta­tivas para, de­pois do 25 de Abril, manter nos cár­ceres al­guns presos an­ti­fas­cistas e re­cusar a le­ga­li­zação do PCP), haver na ca­pital de Por­tugal uma ave­nida cujo to­pó­nimo o ho­me­na­geia. O que com­prova a uti­li­dade das pa­la­vras de Vasco Lou­renço para que não nos en­ga­nemos na ava­li­ação do pas­sado, ainda que apenas em re­la­tivos por­me­nores. O povo por­tu­guês já teve, ao longo das dé­cadas do fas­cismo, uma pe­sada conta de em­bustes que lhe foram im­pin­gidos, a maior parte deles de uma gra­vi­dade cri­mi­nosa, ou­tros talvez re­la­ti­va­mente se­cun­dá­rios. De qual­quer modo, dis­pensam-se os per­pe­trados já em clima de li­ber­dade e Vasco Lou­renço ajudou a com­pletar um ima­gi­nário re­trato do ma­re­chal An­tónio Spí­nola.




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