Amor à arte

Os andaimes das falcatruas<br> de uma colecção de arte

Manuel Augusto Araújo

Quando se ad­quire uma obra de arte, por maior que seja a paixão o com­prador sabe que está a fazer um in­ves­ti­mento de va­lo­ri­zação ga­ran­tida.

Hoje, as obras de arte são um nicho do mer­cado dos ob­jectos de luxo. Mu­seus e ga­le­rias são os pi­lares do sis­tema de va­lores. A obra de arte é fil­trada através das ga­le­rias, co­lec­ci­o­na­dores, ins­ti­tui­ções pú­blicas. Sobre a obra de arte es­creve-se em meios de co­mu­ni­cação so­cial. Essa massa flu­tu­ante de in­for­mação acaba fi­xada na His­tória(s) de Arte. Na arte, a his­tória e a crí­tica valem di­nheiro. Está-se bem perto dos mé­todos de fun­ci­o­na­mento do sis­tema ban­cário.

Os com­pra­dores de obras de artes ou o fazem porque se in­te­ressam por arte ou o fazem para in­ves­ti­mento. Nesses úl­timos há quem ma­quilhe o ob­jec­tivo de ex­trair mais-va­lias por um sú­bito amor à arte, como Jorge Brito (JB), Be­rardo ou Ren­deiro, e quem não se pre­o­cupe com esse te­atro, como Pais do Amaral.

Na ordem do dia está a ne­go­ci­ação da co­lecção Be­rardo e de seis qua­dros de Viera da Silva que os her­deiros de Brito ame­açam re­tirar da Fun­dação Arpad Szenes-Vi­eira da Silva. Sobre a saga Be­rardo já aqui se es­creveu (*).

As fa­ça­nhas de JB, co­lec­ci­o­nador de arte, homem de ne­gó­cios, fun­dador do Banco In­ter­con­ti­nental Por­tu­guês (BIP), são bem des­critas por Silva Lopes (Pú­blico, 10/​09/​2008) mi­nistro das Fi­nanças nos pri­meiros go­vernos pro­vi­só­rios de­pois da Re­vo­lução de Abril, go­ver­nador do Banco de Por­tugal de 1975 a 1980. «Agora fa­lamos dessas coisas, (BPN e BPP) mas com­pa­rado com que o Brito fazia… (…) O Brito uti­li­zava os de­pó­sitos no BIP para os seus ne­gó­cios pes­soais. Tudo o que aí se punha era para os seus ne­gó­cios pes­soais. Não em­pres­tava apenas a si pró­prio, em­pres­tava também ao jar­di­neiro que era para ele, claro. Com­prava de tudo ter­renos, pa­lá­cios, arte, tudo. De­pois nas com­pen­sa­ções do Banco de Por­tugal, o BIP es­tava sempre a des­co­berto. O BdP apa­recia-me quase todos os dias a dizer mais um des­co­berto do BIP. O BdP teve que adi­antar nessa al­tura 10 mi­lhões de contos que agora cor­res­pondem a mais de 100 mi­lhões.» JB con­ti­nu­aria a viver à tripa forra e a co­lec­ci­onar arte se não ti­vesse sido preso em Se­tembro de 1974. Em cinco meses, o Es­tado tapou os bu­racos fi­nan­ceiros do BIP a uma média de 20 mi­lhões/​mês, ao câmbio ac­tual cerca de 100 mi­lhões euros/​mês, que caíam sem se perder um cên­timo nos bolsos de JB, o que faz Silva Lopes afirmar: «Pes­so­al­mente, con­si­dero que o Brito foi um dos in­di­ví­duos mais frau­du­lentos do país. O que se está a passar agora (BPN e BPP) não é tão mau, apesar de ser grave, mas o pobre do Alves dos Reis ao pé do Brito…»

Em suma, a cé­lebre co­lecção de arte JB, uma das me­lhores e mais ex­tensas em Por­tugal, foi com­prada com o nosso di­nheiro. Além de saber que aquilo era um bom ne­gócio, também sabia como a va­lo­rizar. O caso mais co­nhe­cido é o do Pessoa de Al­mada Ne­greiros que com­prou por mil contos e ofe­receu com apa­rato e sem ino­cência ao Museu da Ci­dade, o que fez dis­parar o valor da sua co­lecção de al­madas. Um es­pe­cu­lador nunca perde a mão. Quando lhe ar­res­tarem os bens como ga­rantia de pa­ga­mento das dí­vidas, as obras de arte ti­nham-se quase todas eva­po­rado. Uma parte foi apre­en­dida pela po­lícia es­pa­nhola quando era con­tra­ban­deada pela fron­teira trans­mon­tana.

O crime com­pensa

As al­te­ra­ções po­lí­ticas em Por­tugal, fa­vo­recem-no. Os go­vernos, mos­trando a sua na­tu­reza de classe e sem ruga de ver­gonha, deram passos para ele re­aver o pa­tri­mónio ad­qui­rido em su­ces­sivos golpes de con­tra­facção. Em 1979 o go­verno de Mota Pinto pu­blica um de­creto-lei em que se de­ter­mi­nava que JB podia re­aver os bens se nin­guém se opu­sesse. O BdP, o seu go­ver­nador, opu­seram-se. O tri­bunal de­cidiu em con­for­mi­dade, mas os ventos eram fa­vo­rá­veis ao es­bulho. Em 1982, o go­verno AD as­sina um acordo com JB. Ar­quiva todos os pro­cessos ju­di­ciais. De­volve-lhe os bens con­ge­lados. O mundo da cul­tura res­pirou de alívio. O te­souro em arte acu­mu­lado por JB re­gres­sava ao País. Todo não, porque, en­tre­tanto, JB tinha ven­dido uma boa parte. As cenas pa­té­ticas do amor à arte dessa gente que só se apa­zigua com maços de notas. Nos anos 60, quando JB co­meçou a com­prar obras de arte, o mer­cado era quase ine­xis­tente o que pos­si­bi­litou com­prar ba­rato, muitas vezes por ata­cado. Com­prou ex­po­si­ções in­teiras antes de as ver e de abrirem ao pú­blico. O di­nheiro jor­rava fa­cil­mente para os bolsos dele, abrindo bu­racos gi­gan­tescos no BIP que o pronto so­corro do BdP ia a correr tapar com o nosso di­nheiro. Ca­mi­nhos tão tor­tu­osos que nin­guém sabe ao certo a di­mensão da sua co­lecção de arte e quantas obras ali­enou. Em 1983, ne­go­ceia com a Fun­dação Ca­louste Gul­ben­kian um con­junto im­por­tan­tís­simo de pin­tura e de­senho com que o Centro de Arte Mo­derna é inau­gu­rado. Fez al­gumas do­a­ções. Ne­gócio é também ofe­recer uns trocos. O Alves dos Reis não foi só um vi­ga­rista, também foi be­ne­mé­rito.

Anos mais tarde, a co­lecção de Jorge Brito é fun­da­mental para a cons­ti­tuição da Fun­dação Arpad-Szenes Vi­eira da Silva. Em 1994 acerta com Sommer Ri­beiro um em­prés­timo à FASVS. JB movia-se com grande li­ber­dade na FAVS. Ia lá buscar uns qua­dros, de­po­si­tava ou­tros. Nesse vai e vem uns vol­tavam ou­tros de­sa­pa­re­ciam como conta a di­rec­tora do Museu da FASVS, Ma­rina Bairrão Ruivo, «queria umas em casa e de­po­si­tava ou­tras (…) houve al­turas em que se per­cebia que era para fazer um ne­gócio (…) Pa­rece-me que até nisso Jorge Brito foi muito in­te­li­gente, porque vendia, mas fi­cava sempre com o me­lhor para ele». JB era fino como um alho. Aos prin­cí­pios éticos dizia nada, como se vê no modo como usava os di­nheiros dos de­po­si­tantes no BIP em pro­veito pró­prio.

Em 2006 a morte de Sommer Ri­beiro e de Jorge de Brito co­loca um pro­blema à FASVS, ambos eram os ga­rantes do acordo de em­prés­timo. Em curso estão as ne­go­ci­a­ções desse es­pólio. Seis qua­dros, seis mi­lhões de euros. É pegar ou largar. Os qua­dros estão clas­si­fi­cados. Não po­derão sair de Por­tugal a não ser vi­o­lando a Lei de Bases do Pa­tri­mónio Cul­tural. Os her­deiros de JB fazem ul­ti­matos. O an­te­rior mi­nistro da Cul­tura, João So­ares, pro­punha ad­quiri-los por troca com ter­renos no valor de seis mi­lhões de euros. Não se sabe onde os ia de­sen­cantar.

É uma in­dig­ni­dade, uma ver­gonha que o Es­tado Por­tu­guês ceda às ame­aças dos her­deiros de Jorge de Brito, co­nhe­cendo-se, como Silva Lopes ex­plica, os mé­todos usados pelo ban­queiro para, com o di­nheiro dos con­tri­buintes, or­ga­nizar a sua co­lecção de arte.

Nin­guém terá de­cência e co­ragem para acabar de vez com esta farsa?! O crime, se for ta­pado pelo manto es­bu­ra­cado do amor à arte, é per­mi­tido e com­pensa!

(*) A Co­lecção, o Bimbo, o Pri­meiro-Mi­nistro e o seu As­sessor (Avante! 22/​06/​2006)
Lavar o Cupão co­lec­ci­o­nando Obras de Arte (Avante!08/​06/​2006)
As Ne­go­ci­atas da Fun­dação Be­rardo (Avante!22/​04/​2010)
Pa­lha­çadas sem Arte (Avante!13/​10/​2011)

 



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