A discreta cimeira
Nos primeiros dez dias do mês em curso, os diversos canais abertos ou não que no seu conjunto são designáveis por «televisão portuguesa» falaram-nos sobretudo de futebol, isto é, do Euro 16 a decorrer em França. Compreende-se ou adivinha-se: preparavam-nos para a alegria que iria generalizar-se a todo o País no dia 10, quando a equipa nacional iria cantar de galo, digamos assim, no estádio de Saint-Dennis, em Paris. Vinte e quatro horas mais tarde, pelo menos em Lisboa mas decerto um pouco por todo o País, ainda se ouvia o festivo toque de cláxones em público testemunho da alegria que a vitória trouxera a esta população pouco visitada por alegrias: continuava a haver muitas famílias que tinham perdido a sua casa, continuavam milhares de desempregados sem qualquer apoio estatal, a taxa de cidadãos imersos na situação técnica de pobreza mantinha-se em torno dos 20 por cento, mas (como diriam os nossos compatriotas do Norte na sua peculiar expressividade) carago!, éramos campeões da Europa, e isso sobrepujava todo o resto. Deve ser em atenção a essa magia do futebol e ao poder analgésico que lhe está associado que todos os canais lhe são, em maior ou menor grau, tão visivelmente afetos: é, como bem se sabe, uma receita de acesso fácil, apetitosa para quase todos e que dá milhões. Embora, quanto a este último aspecto, não se saiba muito bem a quem e a quantos.
E do resto?
Entretanto e embora possa parecer difícil de acreditar, o mundo continuava para além dos diversos relvados franceses em que decorria a fase final do Euro 2016; a TV é que não podia dar-lhe muita atenção, coitada, porque antes do mais estavam Ronaldo, o melhor do mundo, e os seus vinte e dois companheiros mais o excelente Fernando Santos. Percebe-se. Ora, entre os diversos acontecimentos que não podiam ter espaço adequado nas atenções da televisão portuguesa, e portanto nos seus noticiários, estava a Cimeira da NATO a decorrer em Varsóvia, ali mesmo diante da Rússia de Putin no mais que provável propósito, e aliás redundante, de que o acontecimento não escapasse à atenção do presidente russo. A Cimeira, que obviamente tem direito a maiúscula inicial, deve ter sido coisa fina, tanto e de tal modo que até o presidente Obama veio do outro lado dos mares para não faltar ao evento enquanto no seu próprio país alguns polícias assassinavam negros em processo de execução supersumária e outros eram por sua vez abatidos por um ex-combatente no Afeganistão. A Cimeira era, pois, evento importante, a seu respeito falava-se até de uma indesejável ressurreição da Guerra Fria de sinistra memória excepto para a indústria armamentista USA. Contudo, a generalidade da televisão portuguesa pouco relevo lhe deu, foram escassas as notícias a seu respeito, no decurso daqueles dias a bola era praticamente tudo e o resto quase nada. Talvez pelos ecrãs dos nossos televisores tenha passado de raspão um ou outro dos politólogos do costume e então terão sido referidas, como já é de rotina, a «ameaça russa» e a necessidade de enfrentá-la. Se, porém, buscarmos algum fundamento concreto para a denúncia, só encontramos o chamado «caso ucraniano», isto é, o acesso ao poder em Kiev de um governo infiltrado, ou pelo menos condicionado, por uma extrema-direita assumidamente nazi, e também a autodeterminação de um território do Leste ucraniano onde o russo é a língua materna e a russofilia é esmagadoramente maioritária. Entretanto note-se, porque é curioso, que a democrática União Europeia dá claros sinais de estar disposta a acolher no seu seio, já um poucochinho pútrido, um país cujo governo no mínimo convive amigavelmente com nazis. De tudo isto e decerto muito mais se tratou em Varsóvia, por sobre tudo isto a televisão portuguesa passou a correr. Atrás da bola e do título europeu. Felizmente, ganhámos!, e cada um de nós pode sentir-se um pouco campeão da Europa. De futebol. E do resto?