Cultura e ovos de ouro

Manuel Augusto Araújo

Entre a cultura e turismo há uma imbrincada rede de interesses. Património edificado, museus, eventos culturais são os motores do turismo cultural. O contributo da cultura para o crescimento desse mercado é central, mas não tem o devido retorno por parte do turismo. Quem demanda Lisboa, tem nos seus monumentos a motivação. O que seria Lisboa para os turistas se não existissem os Jerónimos, a Torre de Belém, o Museu dos Coches, o Castelo de São Jorge?

O que recebem os museus e monumentos por serem a âncora desse turismo com grande peso na economia do País? Rigorosamente nada! Uma situação que a Cultura tão maltratada do ponto vista orçamental deveria rever. São múltiplas as relações entre o património e a indústria turística, nomeadamente as imobiliárias a ela associadas.

O património, cultural e natural, gera grandes apetites. Recentemente o jornal Economist, num editorial intitulado «The $9 trillion sale», escreve que Thatcher e Reagan usaram as privatizações como ferramenta para combater os sindicatos e transformar em receitas diversos serviços públicos e que os seus sucessores no século XXI, «necessitam fazer o mesmo com os edifícios, terrenos e recursos naturais, porque é um enorme valor que está à espera de ser desbloqueado». Trocando por miúdos, nos centros decisores do capitalismo internacional, FMI, Banco Mundial, BCE etc., está a levedar uma nova onda de privatizações de tipo novo e radical: vender bens imobiliários estatais, incluindo patrimónios histórico-culturais, o que já está acontecer na Grécia, onde a dificuldade será avaliar o Partenon.

Enquanto esperam a chegada dos novos tempos, os empreendedores instalam-se no património edificado, impondo condições pouco lineares. Exemplo recente é a instalação de um hotel de cinco estrelas no Claustro do Rachadouro, no Mosteiro de Alcobaça.

Um dos meios de salvaguardar o património edificado é dar-lhe novas funções sem que a sua identidade seja posta em causa. Sempre foi assim ao longo dos tempos. O Palácio de São Bento, onde está instalada a Assembleia da República, começou por ser um convento. Já albergou as mais diversas instituições, até uma prisão onde esteve detido Bocage.

São intervenções que devem ser cuidadosamente avaliadas e não seguirem o padrão que se está a desenhar e a ser prevalecente de instalar unidades hoteleiras de bandeja. No caso, a intervenção, até pelo histórico de anteriores usos, pode até ser aceitável, mas o mesmo não sucede com os termos da concessão por cinquenta anos, com renda anual de 5 000 euros, 416 euros/mês, o aluguer de um T1 em Lisboa! Valor irrisório que nem consegue ser simbólico.

O investimento do concessionário para transformar o claustro num hotel com 81 quartos é de 15 milhões de euros. Contas grosseiras o custo quarto/noite é menos de 11 euros com ocupação plena. Com uma ocupação média de 25 por cento, o custo quarto/noite é de 40 euros. Qual será o seu valor de mercado? Nunca menos de 150 euros.

A realidade é outra. A empresa concessionária tem um esforço financeiro inicial a amortizar, tem custos de manutenção e funcionamento. Cria setenta postos de trabalho. Tem efeito multiplicador na economia local. Olhando para os números, mesmo grosseiros, a amortização do investimento não será complexa. Resta saber se não haverá outras benesses por via fiscal. No acto de assinatura do protocolo o ministro congratulou-se com a reabilitação que vai ser feita de parte do Mosteiro de Alcobaça. Deu aquela intervenção como exemplo para a mobilização entre Poder Central, Poder Local e privados, sublinhando: «a Cultura tem valor e deve ser, como aqui se demonstra, um contributo para a criação de riqueza para o País, sem matar a galinha dos ovos de ouro, antes ajudando à criação de mais galinhas e de mais ovos».

Na capoeira outra galinha já está a chocar outro ovo de ouro no Mosteiro da Batalha.

A questão que se coloca é o dono das galinhas, o Estado, estar disponível para entregar os ovos de ouro... e a preços de saldo. Se nalguns casos, cuidadosamente analisados, as parcerias entre os Poder Central e Local e os privados são aceitáveis na base de protocolos que não sejam lesivos para o Estado e para o Património Cultural, como frequente e escandalosamente acontece, vejam-se as famigeradas PPP, há tudo a opor a concessões com este teor. Quem vai continuar a manter o Mosteiro de Alcobaça é o Estado. O concessionário que beneficia do valor patrimonial do todo e só participa na reabilitação de uma parte deve ser chamado a contribuir para esse todo. O mínimo exigível seria que uma percentagem dos resultados operacionais da exploração do hotel fossem adstritos à manutenção do Mosteiro.

Assim vai a economia da cultura e as suas galinhas dos ovos de ouro.

 



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