Cimbelino

José Carlos Faria

Image 20994

Neste ano de 2016 com­pletam-se 400 anos sobre a morte de Sha­kes­peare. Para as­si­nalar o 4.º cen­te­nário, a BBC con­vidou um largo nú­mero de ac­tores e ac­trizes para lerem pe­quenos ex­certos re­ti­rados da vasta obra deste nome fun­da­mental da his­tória do te­atro e, em pa­ra­lelo, pro­cedeu à gra­vação de al­gumas das suas peças, numa re­cri­ação do que se pensa terem sido as con­di­ções de re­pre­sen­tação quando pela pri­meira vez foram le­vadas à cena, entre os fi­nais do sé­culo XVI e o início do sé­culo XVII. Isto apesar das teses mis­ti­fi­ca­doras e de classe (um plebeu não po­deria nunca es­crever assim, in­sistem) que, con­fun­dindo in­dí­cios, vagos e não fun­da­men­tados, com provas con­sis­tentes, pre­tendem ter sido Edward de Vere, 17.º conde de Ox­ford, quem es­creveu obras de  Sha­kes­peare.

Porém, o que im­porta, de facto, é o le­gado de uma vasta dra­ma­turgia de enorme sen­si­bi­li­dade poé­tica e que con­tinua a in­ter­pelar-nos na­quilo que de mais hu­mano pos­suímos. A atenção dada a um clás­sico que não é apenas na­ci­onal mas que ad­quiriu uma di­mensão uni­versal, leva a que uma das prin­ci­pais com­pa­nhias te­a­trais bri­tâ­nicas seja a Royal Sha­kes­peare Com­pany, de­di­cada ex­clu­si­va­mente à abor­dagem da obra do autor. Por cá, seria bom que Gil Vi­cente, o nome mais im­por­tante do te­atro eu­ropeu da sua época, sus­ci­tasse algo de pa­re­cido. Con­tudo, in­fe­liz­mente, não é isso que se ve­ri­fica.

A po­lí­tica de su­bor­ça­men­tação cró­nica li­gada à re­dução dos apoios à cri­ação ar­tís­tica em geral, e ao te­atro em par­ti­cular, con­duziu o pa­no­rama cul­tural por­tu­guês a um es­tado ca­tas­tró­fico. É por isso de saudar, desde logo pela su­pe­ração de uma con­jun­tura es­pi­nhosa, a mon­tagem, nas ruínas do Carmo, pelo Te­atro do Bairro, de «Cim­be­lino», uma peça de Wil­liam Sha­kes­peare, tra­du­zida por Luísa Costa Gomes e en­ce­nada por An­tónio Pires.

«Cim­be­lino», um dos úl­timos textos de Sha­kes­peare e um dos mais longos, mis­tu­rando prosa e po­esia, foi pro­va­vel­mente apre­sen­tado, com bi­lhetes mais caros, no te­atro fe­chado de Black­friars, o qual, com­pa­ra­ti­va­mente com o te­atro sem tecto do Globe, dis­punha de me­lhores con­di­ções téc­nicas. Este úl­timo as­pecto é re­le­vante dado o re­curso à te­a­tra­li­dade de apa­rato, como se pode ler numa das in­di­ca­ções cé­nicas em que Jú­piter, deus ex ma­china vindo para re­solver e pa­ci­ficar as re­la­ções con­tra­di­tó­rias das gentes, deve descer «sen­tado numa águia, entre tro­vões e re­lâm­pagos», lan­çando raios, e que é sen­tido como «os dedos das po­tên­cias lá em cima que tocam/ a har­monia desta paz».

A trama do en­redo é com­plexa, numa mis­tura de es­tilos, en­vol­vendo o oní­rico, o fan­tás­tico e ma­ra­vi­lhoso, o so­bre­na­tural, o mí­tico, numa base his­tó­rica do­cu­men­tada na qual Kim­be­linus se torna rei da Bri­tânia em 33 a.C., man­tendo uma re­lação amis­tosa com os ro­manos, pa­gando-lhes tri­buto mesmo quando isso podia ser evi­tado. O seu su­cessor, Gui­dério, re­cusou-se a tal e morreu na guerra que por este mo­tivo se travou. Sha­kes­peare ins­pira-se neste as­sunto (que afirma uma pri­meira iden­ti­dade na­ci­onal bri­tâ­nica) e faz co­e­xistir a Roma An­tiga com o Re­nas­ci­mento, o País de Gales pri­mi­tivo e a Bri­tânia da ocu­pação ro­mana, num pro­cesso que alude a tó­picos dis­persos, oriundos de, pelo menos, sete textos da sua pró­pria dra­ma­turgia an­te­rior. «Cim­be­lino» cor­res­ponde a um mo­delo ex­pe­ri­mental que viria ainda a ser aper­fei­çoado.

O in­ves­ti­gador Northop Frye re­fere: «Há que ler, em Cim­be­lino, o sen­tido de uma grande trans­for­mação nos des­tinos hu­manos a acon­tecer fora do palco. (…) Porém, Cim­be­lino, não é, de modo algum, uma peça his­tó­rica: é pura lenda po­pular». De­no­mi­navam-se, pois, «ro­mances», as der­ra­deiras peças de Sha­kes­peare, do­se­ando a tra­gédia e a co­média, as­so­ci­ando as «mas­ques», pan­to­mimas e re­pre­sen­ta­ções ale­gó­ricas do jogo cor­tesão, a uma per­sis­tente e ge­nial ca­pa­ci­dade de des­mon­tagem dos me­ca­nismos de Poder. A corte de Cim­be­lino mostra-se apo­dre­cida pela men­tira, traição, mes­qui­nhez, sede de di­nheiro, re­flexo do con­texto quo­ti­diano da era Isa­be­lina em que Sha­kes­peare viveu: guerra e fome, crise nos campos, au­mento da po­pu­lação, in­flação e crise das fi­nanças es­ta­tais (im­pos­sível não pensar nas causas do «Brexit»). Numa «guerra civil da cons­ci­ência», com a «mu­dança dos cen­tros do mundo e do uni­verso», de­pa­rava-se uma cli­vagem entre a aris­to­cracia em crise e de­pois a bur­guesia as­cen­dente (cuja che­gada ao Poder, com os Pu­ri­tanos, acar­retou, em 1642, o en­cer­ra­mento dos te­a­tros) e, do outro, a massa po­pular em­po­bre­cida, rural e ur­bana.

A peça acaba com a pa­lavra «paz», que, neste caso, sig­ni­fica a ca­pi­tu­lação e a sub­missão à po­de­rosa força do Im­pério.

E como cla­rões, ecoam frases:

«Ne­ces­sário é apenas pôr em marcha as forças que an­seiam por mover-se.»

«Digo-te eu, com­pa­nheiro: pelo ca­minho que sigo a nin­guém faltam olhos que o possam con­duzir, mas há por aí quem os feche e os não queira usar.»

«Por es­tranho que seja, é no en­tanto ver­dade…»

Luís Mi­guel Cintra chamou-lhe «um te­atro que a si pró­prio se usa para assim não de­sistir do Homem.»




Mais artigos de: Argumentos

A ponte e o preço

No passado dia 6 completaram-se cinquenta anos sobre a inauguração da Ponte 25 de Abril, então sob a designação subserviente e abusiva de Ponte Salazar, como se o ditador tivesse dado uma contribuição relevante para a sua construção (excepto obviamente a...

O desencontro de Portugal<br>com o Olimpismo

Dentro da dinâmica complexa que o País está a viver, o desporto português passa por uma das suas mais estranhas situações, de que fizeram parte a vitória extraordinária no Campeonato Europeu de Futebol e as várias medalhas de ouro e...