Os incendiários

Correia da Fonseca

Ac­tuam so­bre­tudo de noite, a co­berto das trevas que to­maram conta do País e quando ruas e ca­mi­nhos se de­ser­ti­fi­caram em maior ou menor grau, com a ge­ne­ra­li­dade da po­pu­lação re­co­lhida em suas casas e en­tregue aos quo­ti­di­anos há­bitos noc­turnos. É então que se aplicam a fazer o que os seus pen­dores pes­soais lhes pedem ou o que lhes foi en­co­men­dado por quem se oculta e pro­va­vel­mente para sempre fi­cará ig­no­rado, pois que a in­ves­ti­gação que per­mi­tiria iden­ti­ficá-los a todos é um tra­balho de tal forma eri­çado de di­fi­cul­dades que não será de mais con­si­derá-lo ine­xequível, ao menos por en­quanto. Ac­tuam, pois, quando a ge­ne­ra­li­dade da po­pu­lação está em suas casas, pas­siva, dis­traída, di­gamos que vul­ne­rável, e é então que eles vêm lançar o que bem se pode de­signar por se­mentes de fogo, os iní­cios do grande e ge­ne­ra­li­zado in­cêndio com que so­nham por conta pró­pria ou alheia, que ao longo dos meses vi­eram ima­gi­nando desde o In­verno ou que por ou­tros, mais po­de­rosos e en­di­nhei­rados, veio sendo so­nhado e para ver con­se­guido pa­garam. Não será grande exa­gero, pois, con­si­derar que a ge­ne­ra­li­dade deles tra­balha à con­sig­nação, di­gamos assim, ainda que em muitos casos o cum­pri­mento de en­co­mendas coin­cida com al­guma vo­cação es­pon­tânea para a prá­tica da pi­ro­mania. De qual­quer modo, não será cor­recto des­crevê-los como pri­mi­tivos ado­ra­dores do fogo: al­guma coisa os move que ul­tra­passa o me­ra­mente ins­tin­tivo, talvez uma aversão an­tiga, talvez a ape­tência de uma vida mais fa­ci­li­tada, talvez um sin­cero con­ven­ci­mento que pelo ca­minho da vida perdeu o sen­tido da jus­tiça e/​ou do acei­tável. Por isso eles vêm so­bre­tudo quando a noite cai e dis­tri­buem por aqui e por ali os focos do in­cêndio com que so­nham ou que lhes é pago.

De men­tira em riste

Não, ao con­trário do que pa­reça não es­tamos a falar dos au­tores de al­guns dos cha­mados «in­cên­dios de Verão» que de­voram o país verde: hoje e aqui, o fogo não é esse e os in­cen­diá­rios não são os que ini­ciam in­cên­dios porque para isso se ven­deram ou porque são do­entes do foro psi­quiá­trico, são ou­tros. São os que en­tram em nossas casas pela pe­cu­liar porta que é o ecrã do nosso te­le­visor e daí, noite após noite, acendem o ras­tilho de pa­la­vras que, a ter êxito, de­sen­ca­de­aria o in­cêndio que des­truiria a im­por­tante so­lução po­lí­tica a que uma piada de mau gosto e de mau perder chamou «ge­rin­gonça». A pró­pria pa­lavra e a as­sus­tada ani­mo­si­dade por ela re­ve­lada des­vendam quanto a con­ver­gência con­se­guida in­co­moda os ser­vi­dores atentos e obri­gados dos grandes in­te­resses. Ora, os in­cen­diá­rios a que estas co­lunas hoje se re­ferem são os que nos en­tram em casa de men­tira em riste, a dis­pa­rarem fal­si­fi­ca­ções e even­tuais ca­lú­nias como quem dis­para tiros de mor­teiro ou, di­zendo-o mais ade­qua­da­mente, como quem vai acen­dendo iní­cios do in­cêndio amplo que de­sejam e es­peram. Al­guns fazem-no por con­vicção neles pró­prios en­rai­zada, ou­tros terão des­cido à con­dição pouco ilustre de mer­ce­ná­rios, mas todos eles con­vergem na ten­ta­tiva de in­cen­diar uma cons­trução que emergiu do voto mai­o­ri­tário do povo. São os cha­mados ana­listas, os se­le­ci­o­nados por quem sabe se­lec­cioná-los para a in­flu­ente função de te­le­co­men­ta­dores, os ele­mentos de uma es­pécie de equipa in­formal que para o es­sen­cial é mo­no­color e onde, na­tu­ral­mente, não tem lugar quem in­corra na sus­peição de ser pró­ximo do PCP. Como bem se com­pre­ende, esses ver­da­deiros ope­ra­ci­o­nais têm apoios no in­te­rior das es­ta­ções que fre­quentam: muito seria de ad­mirar que também aí não hou­vesse co­la­bo­ra­dores para esse es­forço. E assim pros­segue, emissão após emissão, o tra­balho de in­cen­diar a ver­dade até que dela apenas restem cinzas; assim pros­segue a ne­ces­si­dade do tra­balho diário do ci­dadão avi­sado para a re­jeição da men­tira e a re­cu­pe­ração da ver­dade. Para que os in­cen­diá­rios percam o seu tempo. E as der­rotas da di­reita se mul­ti­pli­quem e am­pliem.




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