Marinheiros insubmissos

Gustavo Carneiro

Image 21304

A his­tória do mo­vi­mento co­mu­nista está re­pleta de der­rotas cujo exemplo e en­si­na­mentos se cons­ti­tuíram como se­mentes de novos com­bates, vi­to­ri­osos. Nos seus 95 anos de his­tória, cerca de me­tade dos quais na si­tu­ação de clan­des­ti­ni­dade im­posta pelo fas­cismo, o PCP conta com vá­rios destes casos.

A re­volta dos ma­ri­nheiros de 8 de Se­tembro de 1936 é um deles: não venceu – e na ver­dade não podia ter ven­cido – mas o exemplo de he­roísmo e ge­ne­ro­si­dade dos jo­vens ma­ri­nheiros cavou fundo na cons­ci­ência de vá­rias ge­ra­ções de mi­li­tantes co­mu­nistas e re­sis­tentes an­ti­fas­cistas. Ao mesmo tempo, a ava­li­ação dos erros co­me­tidos (que a di­recção do PCP pre­vira ainda antes da re­volta, cuja eclosão pro­curou de­sen­co­rajar por não estar en­qua­drada num amplo mo­vi­mento de massas) per­mitiu ao Par­tido acu­mular ex­pe­ri­ência, factor in­dis­pen­sável ao seu de­sen­vol­vi­mento en­quanto força po­lí­tica re­vo­lu­ci­o­nária.

Para com­pre­ender a origem da re­volta e os mo­tivos dos seus pro­ta­go­nistas é pre­ciso com­pre­ender o pa­no­rama na­ci­onal e in­ter­na­ci­onal que então se vivia e ter pre­sente o pres­tígio de que o Par­tido go­zava entre os ma­ri­nheiros e os es­forços da di­ta­dura para lhe pôr fim: na sequência da re­or­ga­ni­zação do Par­tido ini­ciada em 1929 sob di­recção de Bento Gon­çalves foi criada três anos de­pois a Or­ga­ni­zação Re­vo­lu­ci­o­nária da Ar­mada (ORA), que con­gre­gava as di­fe­rentes cé­lulas do PCP na Ma­rinha de Guerra e edi­tava O Ma­ri­nheiro Ver­melho, órgão par­ti­dário clan­des­tino de grande ti­ragem cuja in­fluência se es­tendia a muitas em­bar­ca­ções mi­li­tares – e muito para além delas. Ra­pi­da­mente a ORA se tor­naria na maior or­ga­ni­zação do Par­tido, che­gando a ter perto de 20 por cento do total de mi­li­tantes co­mu­nistas.

Fazer frente ao fas­cismo

As me­didas re­pres­sivas le­vadas a cabo pelo fas­cismo para travar a in­fluência do Par­tido na Ma­rinha e des­man­telar a sua or­ga­ni­zação con­tri­buíram de­ci­si­va­mente para pre­ci­pitar a de­cisão de de­sen­ca­dear a re­volta. Nos meses que a an­te­ce­deram su­ce­deram-se as trans­fe­rên­cias com­pul­sivas e as ex­pul­sões de ma­ri­nheiros, assim como a prisão de al­guns dos mais des­ta­cados res­pon­sá­veis da ORA, o que fazia temer pelo des­tino da pró­pria or­ga­ni­zação.

Assim, e apesar das dú­vidas e in­qui­e­ta­ções ma­ni­fes­tadas desde o início pela di­recção do PCP, os jo­vens ma­ri­nheiros co­mu­nistas dos na­vios Afonso de Al­bu­querque, Bar­to­lomeu Dias e Dão re­sol­veram avançar para a acção mi­litar na ma­dru­gada de 8 de Se­tembro: o ob­jec­tivo era levar os na­vios para o mar e, uma vez fora do al­cance dos ca­nhões, lançar um ul­ti­mato ao go­verno para que rein­te­grasse 17 ca­ma­radas pu­nidos após uma ex­pe­dição em Es­panha, res­pei­tasse os di­reitos dos ma­ri­nheiros e pu­sesse fim às per­se­gui­ções e às pri­sões. Em caso de fa­lhanço, ru­ma­riam a um local onde, uma vez a salvo de re­pre­sá­lias, en­tre­ga­riam os barcos.

A acção fa­lhou, de facto, mas os ma­ri­nheiros não con­se­guiram fugir. Mesmo antes de os na­vios ul­tra­pas­sarem a barra do Tejo, a re­volta foi ra­pi­da­mente do­mi­nada pelas forças go­ver­na­men­tais, que não he­si­taram em bom­bar­dear os su­ble­vados a partir de ins­ta­la­ções mi­li­tares em ambas as mar­gens do rio: 12 ma­ri­nheiros foram mortos sob o fogo da ca­nhoada.

A re­pressão que se se­guiu foi ainda mais san­grenta: dos 200 pri­si­o­neiros, muitos foram con­de­nados a pe­sadas penas de prisão, cum­pridas nos mais te­mí­veis cár­ceres da di­ta­dura – Pe­niche, Angra do He­roísmo e Tar­rafal; entre os 32 an­ti­fas­cistas que per­deram a vida no Campo da Morte Lenta, cinco eram ma­ri­nheiros re­vol­tosos.

Um ano de­ci­sivo

A con­jun­tura na­ci­onal e in­ter­na­ci­onal que se vivia nesse mês de Se­tembro de 1936 teve também uma grande in­fluência na de­cisão dos ma­ri­nheiros de avançar, na­quele mo­mento, para a re­volta. A vi­tória das frentes po­pu­lares em Es­panha e França con­cre­ti­zava a ori­en­tação es­tra­té­gica de­fi­nida pela In­ter­na­ci­onal Co­mu­nista no seu VII (e úl­timo) Con­gresso e di­fi­cul­tava o avanço do fas­cismo, que até então fora im­pe­tuoso em toda a Eu­ropa. A su­ble­vação mi­litar fran­quista de Julho e o início da Guerra Civil em Es­panha con­feriu à acção dos ma­ri­nheiros re­vo­lu­ci­o­ná­rios um ca­rácter de ur­gência.

Em Por­tugal, 1936 foi o ano da cri­ação do Campo de Con­cen­tração do Tar­rafal por de­creto go­ver­na­mental de Abril; em Ou­tubro aí che­garam os pri­meiros 152 presos, entre os quais se en­con­travam al­guns dos ma­ri­nheiros par­ti­ci­pantes na re­volta e ainda o Se­cre­tário-geral do PCP, Bento Gon­çalves, preso no final do ano an­te­rior jun­ta­mente com os res­tantes mem­bros do Se­cre­ta­riado.

O de­sen­rolar dos acon­te­ci­mentos deu razão à di­recção do Par­tido e às suas jus­ti­fi­cadas dú­vidas. Mas nada apaga ou di­minui o he­roísmo e a ge­ne­ro­si­dade dos ma­ri­nheiros in­sub­missos, cuja ini­ci­a­tiva ins­pirou – e ins­pira ainda hoje – su­ces­sivas ge­ra­ções de com­ba­tentes re­vo­lu­ci­o­ná­rios.

 



Mais artigos de: Argumentos

Fogos: saber das raízes

Findo o previsto período de férias, o «Prós e Contras» regressou aos nossos televisores com um tema imposto pelos dias dramáticos que o País viveu ao longo de quase todo este Verão agora já em fase terminal: os incêndios. Aconteceu até que o...

A vida sobre a morte

O recente lançamento em DVD de O Filho de Saul (Saul fia, 2015) pela Midas Filmes é uma oportunidade para (re)descobrir um dos filmes mais notáveis que estrearam em Portugal este ano. Em Outubro de 1944, no campo de concentração e...