Reverter, disse ele

Correia da Fonseca

Um dia destes, um dos muitos su­jeitos que vêm à te­le­visão ex­plicar o País e in­formar-nos de que está em curso um pro­cesso de so­vi­e­ti­zação geral afirmou que a acção do Go­verno visa «re­verter tudo e mais al­guma coisa», isto é, es­tragar o lindo ser­viço que o go­verno do dr. Passos obrou du­rante os anos em que lhe foi per­mi­tido mandar. O cu­rioso é que, des­con­tado o exa­gero da fór­mula, tem razão. O re­co­nhe­ci­mento dessa razão, porém, tem de ser en­qua­drado ou, se se pre­ferir, es­cla­re­cido por uma ve­ri­fi­cação fun­da­mental: a de que o pro­cesso his­tó­rico in­tegra uma ca­deia de «re­ver­sões» que con­subs­tan­ciam li­ber­ta­ções e avanços. No úl­timo ano temos vindo a as­sistir à re­versão de um certo nú­mero de me­didas go­ver­na­men­tais que, di­zendo-o su­ma­ri­a­mente e quanto ao mais cho­cante, vi­saram apro­fundar a si­tu­ação de po­breza de mi­lhões de por­tu­gueses para que os mi­lhares mais bem ins­ta­lados não so­fressem in­có­modos. Mas essas re­ver­sões, por im­por­tantes que te­nham sido para os por­tu­gueses ac­tuais, são de di­mensão mí­nima ao lado de ou­tras que mar­caram o per­curso his­tó­rico na­ci­onal: Abril «re­verteu» o fas­cismo e os seus múl­ti­plos ten­tá­culos, a Re­pú­blica “re­verteu” a mo­nar­quia e a sua es­tag­nação oli­gár­quica, 1640 “re­verteu o do­mínio es­pa­nhol. Se o ac­tual Go­verno se tem apli­cado a fazer al­gumas re­ver­sões é porque, em es­cala menor, en­con­trou dis­po­si­ções que aten­tavam gra­ve­mente contra di­reitos fun­da­men­tais do povo cujo voto mai­o­ri­tário per­mitiu uma so­lução go­ver­na­tiva de que a ta­refa mais im­pe­ra­tiva é exac­ta­mente a de pro­ceder à «re­versão» do que mais agredia ou no mí­nimo gra­ve­mente ame­a­çava a jus­tiça so­cial que é o pri­meiro ob­jec­tivo de uma si­tu­ação de­mo­crá­tica.

Os doutos e os aju­dantes

É sa­bido e aliás evi­dente que a ta­refa global do Go­verno não é fácil e, pior ainda que isso, que en­frenta ver­da­deiros ini­migos ex­ternos cuja na­tural fe­ro­ci­dade é acres­cida por verem que os co­mu­nistas por­tu­gueses, que su­pu­nham con­de­nados para todo o sempre à ex­co­mu­nhão cí­vica, saíram dessa si­tu­ação e estão a apoiar as ne­ces­sá­rias e ade­quadas ta­refas de «re­versão». In­fe­liz­mente, porém, nem todos os ad­ver­sá­rios dessa ver­da­deira ope­ração de lim­peza estão para lá das fron­teiras: quanto a este ponto, já uma vez foram aqui ci­tadas as pa­la­vras de «Os Lu­síadas» sempre tão ac­tuais e lú­cidas e que muito ape­tece re­cordar: «(…) entre os por­tu­gueses / também trai­dores houve al­gumas vezes». É en­ten­dível: para os que in­te­gram a cha­mada classe do­mi­nante e também para a franja po­pu­la­ci­onal que não do­mina ver­da­dei­ra­mente mas de algum modo be­ne­ficia de uma si­tu­ação so­ci­o­po­lí­tica em que uns ar­re­cadam e ou­tros são es­po­li­ados, o que mais im­porta é que não ocorram «re­ver­sões» que de perto ou de longe pre­ju­di­quem um tão agra­dável «status quo». As po­lé­micas re­centes acerca do sis­tema fiscal e de even­tuais al­te­ra­ções a serem-lhe in­tro­du­zidas ilustra essa surda luta, per­ma­nente mas agora agu­di­zada pelo facto para al­guns muito per­tur­bador de que este não é um go­verno de di­reita. E a estas co­lunas cumpre es­pe­ci­al­mente re­gistar que os porta-vozes dessa re­cusa de «re­ver­sões» que ve­nham es­tragar a obra do go­verno an­te­rior, isto é, que ve­nham con­tra­riar o per­curso de acres­cida ex­plo­ração tão di­li­gen­te­mente ins­ta­lado, têm lugar per­ma­nente e des­ta­cado em di­versos ca­nais da te­le­visão por­tu­guesa. São ge­ral­mente doutos es­pe­ci­a­listas con­vi­dados, mas in­fe­liz­mente não é pos­sível omitir que muitas vezes são jor­na­listas «da casa» que, por­ven­tura sem que al­guém di­rec­ta­mente a tanto os obrigue, par­ti­cipam no tra­balho comum de dis­torcer factos, adi­antar in­ter­pre­ta­ções fal­si­fi­cadas, vi­ciar a in­for­mação com gotas de ve­neno, isto é, de men­tira. Por tudo isto há quem se es­falfe a pre­venir os ci­da­dãos te­les­pec­ta­dores para que sempre se man­te­nham em guarda. Sa­bendo, em­bora, que neste caso é di­fícil à ver­dade que, como o azeite, suba à su­per­fície.




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