O leão e os jumentos

Correia da Fonseca

Morto Fidel Castro, dos quatro cantos do crip­to­fas­cismo local ou mul­ti­na­ci­onal sur­giram textos e vozes que nos di­versos meios de co­mu­ni­cação so­cial, in­cluindo na­tu­ral­mente os di­versos ca­nais que en­formam a te­le­visão por­tu­guesa, se apli­caram a agredir a me­mória do líder da li­ber­tação de Cuba. Al­guns deles, se não a sua mai­oria, são tão pri­má­rios, tão sin­ge­la­mente uti­li­za­dores de ve­lhos e toscos ar­gu­mentos, que podem trazer à nossa me­mória a mi­lenar fá­bula do leão en­ve­lhe­cido, re­to­mada pelo quase ines­go­tável La Fon­taine. Como muito pro­va­vel­mente nem todos a re­cor­damos, lem­bremos que a fá­bula nos conta a si­tu­ação de um leão que no fim da vida se viu agre­dido por muitos ou­tros ani­mais que ao longo dos tempos nem se­quer se atre­viam a apro­ximar-se dele, e a todos esses co­bardes o velho leão res­pondia com in­di­fe­rença. Não, porém, quando viu apro­ximar-se um reles ju­mento com a in­tenção de par­ti­cipar na agressão co­lec­tiva: aí, o leão re­agiu com in­dig­nação porque a con­junção da co­bardia com a li­teral bur­rice lhe pa­receu ina­cei­tável mesmo na­quele mo­mento. Ora, no caso desta ofen­siva pós­tuma contra Fidel, o que mais sus­cita in­dig­nação e por­ven­tura algum nojo é a evi­dência do velho ódio que apro­veita agora o en­sejo mis­tu­rando a má-fé da omissão do es­sen­cial com o pu­nhado de dis­tor­ções que ao longo de dé­cadas vi­eram sendo cons­truídas. E por isso pode vi­sitar-nos a me­mória a re­acção do leão da velha fá­bula: é de mais!

O velho vício

Re­cor­demos as duas mais re­pe­tidas acu­sa­ções agora for­mu­ladas contra Fidel: a de ser um di­tador e a de ter con­sen­tido a apli­cação da pena de morte. Ambas são quase pu­eris e evi­den­te­mente in­fames. Quanto à pri­meira, é certo que Fidel Castro foi eleito para a pre­si­dência de Cuba não pela via tra­di­ci­onal, mas no âm­bito de um pro­cesso re­vo­lu­ci­o­nário, mas lem­bremos que Hi­tler, sim, chegou ao poder através de elei­ções, com o apoio do grande ca­pital: será que essa gente que agora abo­canha a me­mória do li­ber­tador de Cuba pre­fere a «de­mo­cra­ti­ci­dade» de Hi­tler, será que é por essa via que a con­dição de di­tador se de­fine? Para lá desse dado di­gamos que ini­cial, ha­verá al­guma dú­vida mi­ni­ma­mente ra­zoável acerca do apoio e mesmo da de­voção que a larga mai­oria do povo cu­bano de­di­cava a Fidel, sem pre­juízo de ilhéus de con­tes­tação in­terna aliás ali­men­tada pelo ex­te­rior e por al­guma ilusão acerca dos su­postos pa­raísos ca­pi­ta­listas? É óbvio que não para qual­quer ob­ser­vador ho­nesto. Quanto a apli­cação da pena de morte so­bre­tudo aos apoi­antes de Ful­gêncio Ba­tista, esse sim, di­tador sem dis­farce nem álibis, re­corde-se que a re­pressão or­de­nada por essa cri­a­tura in­fame in­cluía a cas­tração dos pri­si­o­neiros po­lí­ticos antes da sua exe­cução, o que ob­vi­a­mente ex­plica o rigor da pena apli­cada aos car­rascos e seus cúm­plices entre estes se in­cluindo os que se cum­pli­ci­aram tempos de­pois. Nor­ma­li­zada a vida cu­bana, a pena ca­pital foi uma vez apli­cada a um ofi­cial su­pe­rior do exér­cito cu­bano, e esse facto surgiu como tão raro que sus­citou a crí­tica de muitos apoi­antes da Cuba so­ci­a­lista, mas re­corde-se que a mo­ti­vação do duro cas­tigo não foi de ordem po­lí­tica: tratou-se de um ge­neral com enormes res­pon­sa­bi­li­dades que ce­dera à ten­tação de tra­ficar droga. Assim, pe­rante os factos, a acu­sação de as­sas­sí­nios agora bol­sada contra Fidel surge na sua in­teira he­di­ondez. Bem se sabe, é claro, que os Es­tados Unidos nunca dei­xaram de, ao longo de mais de meio-sé­culo, tentar in­jectar em Cuba o vírus da traição muitas vezes à débil sombra de pre­textos e ma­nejos em favor de uma su­posta de­mo­cra­ti­ci­dade. Mas a ten­ta­tiva da Baía dos Porcos fa­lhou e não foi a única, tendo sido a mais fa­lada, sendo óbvio que foi ca­rac­te­ri­za­dora de um clima de per­ma­nente agressão que não podia fa­vo­recer a su­pos­ta­mente de­se­jada «de­mo­cra­ti­zação». Também o isco do mí­tico con­sumo de bens à «ma­neira ca­pi­ta­lista» foi usado para, em com­bi­nação com os efeitos do blo­queio que todo o mundo ci­vi­li­zado con­de­nava, ali­ciar a po­pu­lação cu­bana. A res­posta era dada pelo povo de Cuba, or­gu­lhoso da sua re­vo­lução, nas praças da Cuba livre que Fidel com ele con­quis­tara. Contra tudo isto e o muito mais que aqui não cabe pouco podem as ca­lú­nias agora des­fe­ridas. Mas bem se sabe que para al­guma di­reita a ca­lúnia é um vício. In­cu­rável e por vezes bem pago.