Memória com vida

Gustavo Carneiro

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Em poucos mo­mentos como nos úl­timos meses se falou tanto da ne­ces­si­dade de pre­servar a me­mória his­tó­rica do fas­cismo, da re­sis­tência e da luta pela de­mo­cracia, num de­bate que foi sus­ci­tado pela in­tenção do Go­verno em con­ces­si­onar a pri­vados, para fins tu­rís­ticos, o Forte de Pe­niche. No se­gui­mento deste anúncio, muitos fi­zeram ouvir a sua voz em de­fesa do ca­rácter pú­blico da an­tiga prisão po­lí­tica de alta se­gu­rança e da ne­ces­si­dade de aí ser er­guido um museu digno da co­ra­josa e tenaz re­sis­tência do povo por­tu­guês ao fas­cismo.

A de­ter­mi­nação e a luta dos de­mo­cratas e dos an­ti­fas­cistas – que pro­mo­veram, entre ou­tras ac­ções, uma pe­tição que re­co­lheu em poucos dias mi­lhares de as­si­na­turas e uma ini­ci­a­tiva no pró­prio forte – le­varam o Go­verno a re­cuar e a re­tirar a an­tiga prisão da lista dos edi­fí­cios pú­blicos e imó­veis his­tó­ricos a con­ces­si­onar. A in­ter­venção do PCP na As­sem­bleia da Re­pú­blica, dando ex­pressão ins­ti­tu­ci­onal a estas mo­vi­men­ta­ções, ga­rantiu que o Forte de Pe­niche não só não será con­ces­si­o­nado como be­ne­fi­ciará de um plano de in­ter­venção ur­gente vi­sando deter a sua de­gra­dação. A me­dida, pro­posta pelos de­pu­tados co­mu­nistas, ficou con­sa­grada no Or­ça­mento do Es­tado para 2017, cons­ti­tuindo um im­por­tante passo para con­cre­tizar o ob­jec­tivo mais vasto de alargar e va­lo­rizar a com­po­nente mu­se­o­ló­gica do Forte, para que seja capaz de res­ponder às exi­gên­cias ac­tuais da luta pela me­mória – ou, me­lhor di­zendo, da ba­talha ide­o­ló­gica.

Desde os anos 80 que existe um museu ins­ta­lado num dos três pa­vi­lhões da an­tiga prisão po­lí­tica, no qual se pro­curou re­cons­ti­tuir o am­bi­ente pri­si­onal e onde é pos­sível vi­sitar o par­la­tório e al­gumas celas in­di­vi­duais, in­cluindo aquela onde es­teve Álvaro Cu­nhal. Todos os anos mi­lhares de pes­soas o vi­sitam, na mai­oria das vezes acom­pa­nhadas por an­tigos presos, que acres­centam ao ma­te­rial ex­posto tes­te­mu­nhos vivos da du­reza da vida pri­si­onal, da luta in­ces­sante, da es­pe­rança in­que­bran­tável na vi­tória.

Opressão e ar­bi­tra­ri­e­dade

A di­mensão que as­sumiu a in­dig­nação e o pro­testo pe­rante a in­tenção do Go­verno de con­ces­si­onar o Forte de Pe­niche é jus­ti­fi­cada desde logo pela im­por­tância cen­tral que a an­tiga prisão de alta se­gu­rança as­sumiu no uni­verso con­cen­tra­ci­o­nário da di­ta­dura fas­cista: du­rante quatro dé­cadas, pas­saram pela prisão do Forte de Pe­niche cerca de 2500 presos, que cum­priram de­zenas de mi­lhares de anos de prisão; al­guns ali per­ma­ne­ceram en­car­ce­rados perto de duas dé­cadas.

A prisão po­lí­tica do Forte de Pe­niche era ge­rida pela PVDE/​PIDE, sendo o seu re­gime pri­si­onal mar­cado pela ar­bi­tra­ri­e­dade: nas agres­sões fre­quentes; nas ab­surdas res­tri­ções à lei­tura, à cor­res­pon­dência e às vi­sitas de fa­mi­li­ares; na vi­gi­lância in­ces­sante sobre os presos e, em geral, sobre a po­pu­lação de Pe­niche. Mas o Forte me­rece ser pre­ser­vado também pelos epi­só­dios de re­sis­tência que aí foram pro­ta­go­ni­zados, que cons­ti­tuem pa­tri­mónio do povo por­tu­guês e da sua cons­tante e co­ra­josa luta contra o fas­cismo, que pela sua di­mensão e com­ba­ti­vi­dade le­varam a di­ta­dura a me­lhorar o re­gime pri­si­onal e a re­frear as ar­bi­tra­ri­e­dades.

3 de Ja­neiro de 1960

As fugas são por­ven­tura a mais no­tável ex­pressão de re­sis­tência dos presos do Forte de Pe­niche. Entre as fugas bem su­ce­didas da­quela que era a mais bem guar­dada das mas­morras do fas­cismo, me­rece par­ti­cular re­alce a de 3 de Ja­neiro de 1960: pelo nú­mero de presos en­vol­vidos, 10, pela cui­dada pre­pa­ração que im­plicou, tanto no in­te­rior da prisão como no ex­te­rior, e pelos seus im­pactos di­rectos e ime­di­atos no de­sen­vol­vi­mento da luta an­ti­fas­cista e na Re­vo­lução de Abril.

Ao de­volver à li­ber­dade Álvaro Cu­nhal (eleito Se­cre­tário-geral em Março de 1961) e ou­tros nove des­ta­cados di­ri­gentes e qua­dros co­mu­nistas, a fuga per­mitiu o in­cre­mento da luta clan­des­tina, a rec­ti­fi­cação do desvio de di­reita que mar­cara a linha po­lí­tica do Par­tido nos anos an­te­ri­ores e a re­to­mada da via do le­van­ta­mento na­ci­onal para o der­rube do fas­cismo, num pro­cesso que cul­minou com a apro­vação em 1965, no IV Con­gresso do PCP, do Pro­grama para a Re­vo­lução De­mo­crá­tica e Na­ci­onal.

Com a nova ori­en­tação, cresceu e alargou-se a luta de massas, nas fá­bricas e nos ser­viços, nos sin­di­catos e as­so­ci­a­ções, nas es­colas e uni­ver­si­dades, nas ci­dades e al­deias do País: o 1.º de Maio de 1962, as greves ope­rá­rias, a con­quista da jor­nada de oito horas nos campos do Sul, as lutas es­tu­dantis e aca­dé­micas e a con­tes­tação à guerra co­lo­nial mi­naram as bases do fas­cismo, que não re­sistiu aos le­van­ta­mentos mi­litar e po­pular de 25 de Abril de 1974.

O Forte de Pe­niche é si­nó­nimo de luta e de re­sis­tência e assim deve ser pre­ser­vado.




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