Notícias do País vazio

Correia da Fonseca

Sob o tí­tulo já sig­ni­fi­ca­tivo de «Des­po­vo­a­mento», a RTP1 trans­mitiu na pas­sada se­gunda-feira, a partir de Vila Real, um pro­grama que teve como tema a de­ser­ti­fi­cação que desde há dé­cadas tem vindo a re­duzir lar­guís­simas áreas do in­te­rior por­tu­guês a ter­ri­tó­rios tris­te­mente po­vo­ados pela ve­lhice, pela tris­teza e pelo aban­dono. A emissão abriu com al­gumas in­for­ma­ções de ca­rácter es­ta­tís­tico acerca da si­tu­ação ac­tual da de­ser­ti­fi­cação do in­te­rior e das ver­da­dei­ra­mente ca­la­mi­tosas pre­vi­sões para o fu­turo não muito lon­gínquo. É, como se sabe, a con­sequência de dé­cadas de emi­gração para terras es­tran­geiras ou, in­ter­na­mente, para o li­toral do País, sempre em con­sequência do­mi­nante da pe­núria de em­pregos. Será certo que a si­tu­ação per­mite ex­cep­ções e al­gumas rés­tias de fu­turo, e delas fa­laram as fi­guras pre­sentes no palco e na pla­teia do te­atro de Vila Real na­quela noite pro­mo­vido a es­túdio de te­le­visão: um mi­nistro, au­tarcas, em­pre­sá­rios de su­cesso. Foram também re­fe­ridas as ac­ti­vi­dades mais re­le­vantes no Norte do País: o tu­rismo agora em no­tória in­ten­si­fi­cação e a já an­tiga e tra­di­ci­onal pro­dução vi­nha­teira em que se des­taca o «port wine» a que Redol de­dicou um ciclo da sua obra e a que chamou «vin­dima de sangue». É claro que nem Redol nem este pe­ríodo da sua obra foram lem­brados, nem cai­riam bem nem talvez vi­essem a pro­pó­sito de um modo im­pe­ra­tivo. Na ver­dade, a emissão foi per­cor­rida por um sopro de es­pe­rança, como aliás bem se en­tende em vista das per­so­na­li­dades pre­sentes, muito mais vo­ca­ci­o­nadas para um op­ti­mismo tão fun­da­men­tado quanto pos­sível do que para a função um pouco fú­nebre de pro­fetas da con­ti­nu­ação da des­graça que con­tinua a as­solar o in­te­rior do País, ainda que com cla­reiras e zonas de al­guma res­sur­reição.

Uma voz au­sente

Es­tavam no palco, pois, au­tarcas da zona Norte do País, nela se in­cluindo na­tu­ral­mente o dis­trito da Guarda, mas ne­nhum dos dis­tritos alen­te­janos, Évora, Por­ta­legre e Beja, au­sên­cias tanto mais no­tó­rias quanto bem se sabe que também a ne­ces­si­dade de emi­grar para so­bre­viver vem fus­ti­gando o Alen­tejo. Porém, uma outra au­sência foi no­tória no te­atro de Vila Real: es­tavam ali o mi­nistro, au­tarcas e em­pre­sá­rios, mas não surgiu nem no palco nem na pla­teia um só tra­ba­lhador que desse voz a um de­poi­mento de quem tra­balha, quando há tra­balho, ou emigra para o li­toral por­tu­guês ou para terras es­tra­nhas em busca da so­bre­vi­vência que lhe é ne­gada na terra onde nasceu. Dado o tema do pro­grama, ob­vi­a­mente de­nun­ci­ador não da par­tida de mi­lhares de ele­mentos do pa­tro­nato mas sim do êxodo da mão-de-obra for­ça­da­mente inac­tiva ou in­su­por­ta­vel­mente sub-re­mu­ne­rada, pa­re­ceria for­çoso ouvir quem de algum modo a re­pre­sen­tasse. É certo que pa­tro­natos au­sentes acon­tecem, e muito, por todo o País, mas não pa­rece que de tais au­sên­cias de­corra algum fe­nó­meno de des­po­vo­a­mento no in­te­rior, po­dendo quando muito sus­citar um re­forço do po­vo­a­mento nas zonas de Cas­cais e do Es­toril, sempre muito aco­lhe­doras para quem nelas se possa aco­lher em boas con­di­ções. De qual­quer modo, é claro que o pro­grama trouxe boas no­tí­cias ou, no mí­nimo, si­nais que jus­ti­ficam ex­pec­ta­tivas po­si­tivas: o Go­verno dá si­nais de estar atento e até sau­da­vel­mente alar­mado com o grau de de­ser­ti­fi­cação já atin­gido em certas zonas e com o agra­va­mento pre­visto nas dé­cadas pró­ximas se nada de eficaz acon­tecer. É certo que desta vez o pro­grama não cuidou de re­gistar o de­poi­mento de algum tra­ba­lhador, neste caso um desses que sempre correm o risco de se verem obri­gados a partir, mas bem se sabe que essa não é omissão que sur­pre­enda: mais ade­qua­da­mente se diria que se en­quadra num velho há­bito da te­le­visão e da ge­ne­ra­li­dade dos media. Assim, talvez nos reste con­gra­tu­larmo-nos por a emissão ter tra­zido à tona da me­mória e do co­nhe­ci­mento geral uma re­a­li­dade que pouco ou nada chega às ci­dades onde tudo se de­cide. Ou se es­quece.




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