- Nº 2263 (2017/04/13)

Adriano Correia de Oliveira está connosco

Argumentos

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Naquele ano a Festa foi em Julho. Estivemos uns dias a ensaiar em casa do Manuel Louzã Henriques, seu amigo e camarada desde os tempos de juventude em Coimbra. Com o Adriano Correia de Oliveira nunca se ensaiava. Não era preciso, porque as cantigas sabiamo-las de cor dos comícios, da rádio, dos discos de vinil e capa grande, de outras vozes que lhas foram roubando e entregando nos lugares onde faziam falta. Mas daquela vez ensaiou-se. Porque havia uma cantiga nova, com música que o Adriano tinha composto para um poema de Eugénia Cunhal – «o tempo passa amor / correm os dias…», que ficou por gravar – e o cantor exigiu-se recatos que a vida de andarilho permanente não lhe permitiam (recatos de que nem gostava). À hora marcada, não me recordo se de sexta-feira se de sábado, subimos ao palco no Alto da Ajuda, o Adriano, eu e o Paulo Vaz de Carvalho, para a última vez em que cantou na Festa do jornal do seu Partido.

Com o Adriano começava-se a tocar por artes de coincidência nos palcos, em comícios e sessões de esclarecimentos, nos encontros da Reforma Agrária, nos lugares mais «difíceis» da acção política dos comunistas, como em Gouveia pouco depois do Verão Quente. Cantou-se à luz dos isqueiros porque a luz do salão tinha sido sabotada – o Dias Lourenço falou, o Adriano cantou acompanhado da Brigada, a voz conquistando a escuridão, o rumor da sabotagem a afastar-se a pouco e pouco como na sonoplastia dos filmes. E era assim por todo o lado, os mais novos a oferecerem-se para o privilégio de acompanhar aquela voz poderosa e suave, penetrante e rica. E ele deixava, como explicou há uns anos o Paulo Vaz de Carvalho nas páginas deste mesmo Avante!: «Quatro tábuas faziam uma mesa, ao cair da tarde; comendo assados ao correr do vinho da Terra Quente, fomos combinando a ordem das intervenções: agora tu, depois eu... fui dando amostras do que levava para tocar, ele ia trauteando canções que se encadeavam bem com a música de guitarra. Surgiam as concordâncias. Conjuguei o toque de clássicos com prelúdios às suas canções; mais um gole de maduro, experimentei acompanhar canções que já conhecia nessa voz que ouvia desde o Liceu. Ajustámos tons e acertámos entradas. Ainda a caneca ia meia e já éramos um duo, um duo com uma guitarra a caminho do palco e uma voz a três anos do silêncio, O concerto saiu bem». Saía sempre bem. E quem diz duo diz trio, e diz quem mais se juntasse à voz do Adriano nas canções-ferramenta do seu propósito revolucionário. Tocar com o Adriano era um acto de criação colectiva, a repetição do processo que é o das lutas todas em que a razão e a fraternidade são matéria de construção dos amanhãs, os tais que só o serão a sério quando os ouvirmos cantar.

Militância comunista

Do Adriano Correia de Oliveira escreveu um dia Óscar Lopes que «esteve desde cedo e até à morte com aqueles para quem a liberdade se concretiza em metas como abolição da exploração pela mais-valia, como a libertação da terra latifundiária, como a realização programática e até constitucional das melhores virtualidades humanas, individuais e colectivas, e como a autêntica autodeterminação nacional, na economia e também na cultura. E é por isso que Adriano Correia de Oliveira está hoje connosco, está hoje com aqueles que realmente se empenham naquela libertação da terra pela qual Catarina Eufémia se transformou, como ele canta, em Rosa de Sangue». E é por isso, acrescentamos nós, que o canto do Adriano persiste canto de soberania apontado aos «comedores de dinheiro / que do salário de tristeza / arrecadam o lucro inteiro». No seu timbre irrepetível pairando sobre «sequências harmónicas muito usadas em Coimbra, a canção do Adriano era sempre o eco de uma balada triste. Louzã Henriques, ao apreciá-lo como autor, disse que ele, acima de tudo, tinha arrancado ao coração do povo um belo punhado de melodias». O canto de Adriano é o dos Fados e Baladas de Coimbra, o das Cantigas Portuguesas, o dos poemas de Manuel Alegre, Rosalia de Castro, Reinaldo Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, Borges Coelho, António Cabral, José Afonso, Fernando Assis Pacheco, Matilde Rosa Araújo, António Gedeão, Manuel da Fonseca, entre muitos mais. O canto de Adriano é o Cantar da Emigração, a Trova do Vento que Passa, O Senhor Morgado, Tejo que Levas as Águas, Morte que Mataste Lira, Lágrima de Preta e todas as mais em que a sua voz emerge, feliz e esperançosa, na paisagem triste das playlist dos enlatados radiofónicos.

Dele dizia José Afonso ser «o mais corajoso de nós todos». A observação aplicava-se aos tempos do fascismo coimbrão, abalado por um canto novo que munia de hinos as vozes daquele tempo. Seria sim o mais corajoso, mas foi também o mais livre dos cantores da sua geração. Em Adriano Correia de Oliveira a militância comunista não foi um detalhe – foi a essência da sua (da nossa) própria liberdade.

Nas tuas mãos tomaste uma guitarra.
Copo de vinho de alegria sã
Sangria de suor e de cigarra
que à noite canta a festa da manhã.

Foste sempre o cantor que não se agarra
O que à Terra chamou amante e irmã
Mas também português que investe e marra
Voz de alaúde e rosto de maçã.

O teu coração de oiro veio do Douro
num barco de vindimas de cantigas
tão generoso como a liberdade.
Resta de ti a ilha de um Tesouro
A jóia com as pedras mais antigas.

Não é saudade, não! É amizade.


Manuel Pires da Rocha