Quando a França resistia

Correia da Fonseca

A RTP2 está a trans­mitir uma série de do­cu­men­tá­rios acerca de grandes es­cri­tores fran­ceses, pros­se­guindo assim um certo afas­ta­mento do an­tigo e ten­den­ci­al­mente cró­nico fas­cínio da ope­ra­dora pú­blica re­la­ti­va­mente aos usos e cos­tumes norte-ame­ri­canos. Pelo cha­mado «se­gundo canal», sempre su­pos­ta­mente cul­tu­ra­li­zante, têm agora vindo a passar sé­ries eu­ro­peias, ex­pressa ou im­pli­ci­ta­mente trans­por­ta­doras de cir­cuns­tân­cias e va­lores eu­ro­peus, o que na­tu­ral­mente se aplaude porque esta nossa nesga de terra não é um pro­lon­ga­mento trans­con­ti­nental da Flo­rida. Ora, num dos úl­timos se­rões foi trans­mi­tido o do­cu­men­tário re­la­tivo a Ro­bert Desnos, poeta de ma­triz sur­re­a­lista que, con­tudo, na quo­ti­diana vida con­creta que lhe coube, não se li­mitou a sur­re­a­lismos por­ven­tura dis­tantes da re­a­li­dade quo­ti­diana mas sim, pelo con­trário, tendo vi­vido du­rante a ocu­pação da França pelas tropas nazis, es­creveu na im­prensa clan­des­tina e par­ti­cipou da Re­sis­tência. Tal como Paul Éluard e Aragon, também vindos do Sur­re­a­lismo e an­co­rando por fim no Par­tido Co­mu­nista Francês e na Re­sis­tência. In­fe­liz­mente, Desnos não teve a sorte de Éluard e Aragon, que pu­deram as­sistir à Li­ber­tação e viver para além dela: preso pelos ale­mães, não por ser poeta re­sis­tente mas sim, mais su­ma­ri­a­mente, por ser judeu, Ro­bert andou uns tempos de campo de con­cen­tração em campo de con­cen­tração até morrer no campo de Te­rezin a 8 de Junho de 45, isto é, um mês exacto de­pois da ren­dição alemã ter sido as­si­nada.

Os dias re­vi­si­tados

Foi, pois, uma vida mar­cada pela tra­gédia a do poeta Ro­bert Desnos, mas o que talvez tenha to­cado o te­les­pec­tador não es­pe­ci­al­mente fas­ci­nado pelo sur­re­a­lismo francês das dé­cadas de 20 e 30 do pas­sado sé­culo te­nham sido as re­fe­rên­cias que o do­cu­men­tário in­te­grou quanto ao quo­ti­diano pa­ri­si­ense e, mais am­pla­mente, francês, du­rante a ocu­pação alemã entre 40 e 44. Re­vi­si­tados agora, longe no tempo e nas cir­cuns­tân­cias, esses dias de re­sis­tência he­róica, sempre cru­el­mente re­pri­mida e sempre im­ba­tida, têm o sabor de uma exem­pla­ri­dade que ainda hoje pode ser olhada como es­trela polar de com­por­ta­mentos po­lí­ticos. Ape­tece fazer aqui a im­pos­sível trans­crição de po­emas como «Tuer», de Éluard, ou «Art poé­tique», de Aragon, ima­gi­ná­rios com­ple­mentos à su­gestão que o do­cu­men­tário acerca de Desnos trans­portou quanto ao clima de uma França que, em­bora com as botas ocu­pantes no seu solo, re­sistiu a in­con­tá­veis cru­el­dades e venceu. A questão é que pas­saram muitas dé­cadas, que os tempos são ou­tros, que já não há pe­gadas das botas nazis, mas, como re­pete o slogan/​pa­lavra de ordem, a luta con­tinua, pois a ameaça nazi-fas­ci­zante não se iden­ti­fica ne­ces­sa­ri­a­mente por bra­ça­deiras com a cruz suás­tica, e os que dela se ser­viram en­con­tram sempre novos e por­ven­tura mais dis­cretos ca­mi­nhos. O do­cu­men­tário acerca de Ro­bert Desnos, poeta e afinal mártir, per­mitiu que aos te­les­pec­ta­dores mais atentos ou talvez mais an­te­ci­pa­da­mente in­for­mados essa epo­peia se­creta, si­len­ciosa e fi­nal­mente ven­ce­dora, re­gres­sasse à me­mória talvez dis­traída. E esse não terá sido, talvez, o seu mé­rito menor.




Mais artigos de: Argumentos

Guernica, paixão pela vida

A República de Espanha tinha encomendado obras a Picasso e artistas seus apoiantes, entre outros Juan Miró, para serem integradas no pavilhão de Espanha na Exposição Universal de Paris. A Guerra Civil de Espanha continuava brutal com os fascistas, apoiados pela Alemanha de Hitler e a...

1.º de Maio – Dia de luta pleno de história

Aumentar salários; reduzir e harmonizar horários com a vida dos trabalhadores e das suas famílias; criar e garantir emprego com direitos e combater a precariedade; desbloquear e dinamizar a negociação e contratação colectiva; revogar as normas gravosas da...

1582 – Edição do códice Splendor Solis

O códice Harley MS. 3469 – Splendor Solis, Esplendor do Sol – conservado na British Library de Londres (Biblioteca Nacional do Reino Unido, uma das maiores do mundo), é considerado o exemplar melhor preservado do mais belo e mais célebre tratado de alquimia ilustrado do mundo. As suas 22...