O ruído ininterrupto

Correia da Fonseca

Há al­gumas se­manas, seria di­fícil e ar­ris­cado dizer quantas, correu a in­for­mação de que o fu­tebol havia en­trado no seu pe­ríodo de de­feso ou de in­ter­regno. Terá sido assim «dentro das quatro li­nhas», como se diz em fu­te­bolês, mas não nos ecrãs dos nossos te­le­vi­sores, e isto, como aliás bem se sabe, porque dia após dia, tarde após tarde e so­bre­tudo noite após noite, longas e ge­ral­mente aca­lo­radas pal­ra­ções acerca do fu­tebol e seus de­ri­vados ocu­param longas horas de di­versos ca­nais por­tu­gueses com des­taque para os ca­nais de es­pe­cial vo­cação in­for­ma­tiva. Mesmo sem re­curso a es­pe­cial me­dição dos tempos de an­tena con­sa­grados a esta ou aquela área de acon­te­ci­mentos, bem se pode dizer sem risco de erro que o fu­tebol é o as­sunto he­ge­mó­nico na te­le­visão por­tu­guesa, aliás pro­lon­gado em com­ple­mentos di­rectos como a es­pécie de pe­cu­liar ha­gi­o­grafia cons­ti­tuída pelo que pode de­signar-se por qual­quer coisa como «Vida e aven­turas de Cris­tiano Ro­naldo». Em dias ainda re­centes, en­quanto se es­pe­rava pela re­a­ber­tura da «nova época», foi a por vezes im­pres­si­o­nante teia de trans­fe­rên­cias com mo­vi­men­tação de va­lores que, de tão altos, jus­ti­fi­ca­riam re­fle­xões e talvez mo­tivem in­dig­na­ções. Im­po­tentes e in­con­se­quentes, bem se sabe.

O me­lhor anal­gé­sico

En­tre­tanto, é claro, o mundo ia ro­dando e o País ia vi­vendo. Não obs­tante, com a única ex­cepção da co­ber­tura do trá­gico surto de in­cên­dios ha­vidos em Julho (com­ple­men­tada com a ver­go­nhosa ofen­siva me­diá­tica da dupla PSD/​CDS com vista a trans­formar em seu pro­veito o horror e o luto), foi o fu­tebol que, em pleno «de­feso», con­ti­nuou a be­ne­fi­ciar de mais tempos de an­tena no con­junto dos di­versos ca­nais, ainda que não em cada um deles. En­tende-se: com todos os pro­blemas e ques­tões que a en­formam a vida vai pas­sando, mas é pre­ciso que o fu­tebol fique sem que nunca se sus­penda a sua su­prema uti­li­dade de fi­xador de aten­ções, até de pai­xões e cui­dados. Usando outra fór­mula, dir-se-á que, para quem manda nestas e nou­tras coisas, é pre­ciso que o ruído me­diá­tico pro­du­zido pelo fu­tebol se man­tenha sem in­ter­rupção para que não se oiçam as lá­grimas e os sus­piros re­sul­tantes do mo­delo de so­ci­e­dade em que se vive e que per­sistem, ainda que por vezes ame­ni­zados por in­su­fi­ci­entes me­didas pon­tuais. Em ver­dade, nem será se­gredo para nin­guém que, como regra geral, o fu­tebol é o me­lhor anal­gé­sico para as dores de­cor­rentes da du­reza do quo­ti­diano. Al­guém disse um dia, re­cor­rendo ob­vi­a­mente a uma ca­ri­ca­tura (mas não se es­queça que a ca­ri­ca­tura é, em prin­cípio, a ex­pressão grá­fica que mais cla­ra­mente mostra o es­sen­cial do ca­ri­ca­tu­rado), que se a mo­nar­quia por­tu­guesa ti­vesse po­dido dispor do fu­tebol como hoje ele existe Por­tugal ainda seria uma mo­nar­quia. A esta sen­tença po­demos de­certo acres­centar a exis­tência da te­le­visão tal como ela hoje se com­porta, isto é, como co­ro­a­dora do fu­tebol como «des­porto-rei» ou até talvez mais que isso: como ver­da­deiro im­pe­rador no ter­ri­tório da in­for­mação. Num ruído que tende a im­pedir que ou­çamos com ade­quada atenção todo o resto, que não é pouco: o País, o mundo e a vida que neles de­corre tu­mul­tuosa.




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