Ler e reler Álvaro Cunhal

Rui Mota

HISTÓRIA Uma das grandes no­vi­dades da Festa do Livro na Festa do Avante! deste ano, e uma das que mais atenção re­cebeu por parte dos seus vi­si­tantes, foi a an­to­logia de textos da au­toria de Álvaro Cu­nhal a que se deu o tí­tulo A Re­vo­lução de Ou­tubro, Lé­nine e a URSS. Sendo uma boa des­crição do con­teúdo da obra, porque é efec­ti­va­mente disso que se trata, não diz tudo sobre a sua di­mensão e al­cance.

Estes textos são para o nosso tempo e para a luta de hoje

Num plano me­ra­mente formal, o livro está or­ga­ni­zado em dez ca­pí­tulos te­má­ticos, cada um deles com uma or­ga­ni­zação cro­no­ló­gica. No total, são mais de cem ex­certos de ar­tigos, re­la­tó­rios, dis­cursos e li­vros es­critos ao longo de mais de ses­senta anos, a que acrescem dois textos (que surgem in­te­gral­mente a abrir e a fe­char a an­to­logia) por serem, no con­junto da obra de Álvaro Cu­nhal, dos que se podem con­si­derar mais de­sen­vol­vidos sobre o tema: «O que de­vemos a Lé­nine», de Abril de 1970, e «O co­mu­nismo hoje e amanhã», de Maio de 1993. Sendo ver­dade que ne­nhum dos textos in­cluídos é pro­pri­a­mente iné­dito (em­bora muitos pu­dessem estar mais es­que­cidos ou ser mesmo des­co­nhe­cidos), a sua lei­tura nesta an­to­logia, mesmo sendo uma re­lei­tura, per­mite sempre novas des­co­bertas.

Em pri­meiro lugar, porque a or­ga­ni­zação por temas per­mite ao leitor um rá­pido acesso à re­flexão de Álvaro Cu­nhal sobre as­suntos que podem ser de par­ti­cular uti­li­dade para uma de­ter­mi­nada si­tu­ação. Olhando para a ac­tual ofen­siva do im­pe­ri­a­lismo, cada vez mais agres­siva e com pe­rigos e con­sequên­cias im­pre­vi­sí­veis, tem uma outra di­mensão ob­servar o papel da URSS e da luta dos povos pela sua li­ber­tação e pela paz, até porque mantém in­teira va­li­dade a tese de que «Para quem queira exa­minar a si­tu­ação in­ter­na­ci­onal com ob­jec­ti­vi­dade e ver­dade, uma con­clusão é ine­vi­tável: os prin­ci­pais pe­rigos para a paz vêm do im­pe­ri­a­lismo, e em pri­meiro lugar do im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano». Ou quando somos con­vo­cados a dar res­posta às cam­pa­nhas an­ti­co­mu­nistas, que aí estão sempre mas que neste ano se ex­pres­saram mais agu­da­mente com os cem anos da Re­vo­lução de Ou­tubro para que não se co­nheça as «re­a­li­za­ções no do­mínio eco­nó­mico, so­cial, cul­tural, ci­en­tí­fico, téc­nico e em todos os as­pectos fun­da­men­tais do de­sen­vol­vi­mento da so­ci­e­dade» na URSS, nem o seu papel como «o maior bas­tião da paz mun­dial».

Trans­formar o mundo

Em se­gundo lugar, o facto de cada tema estar or­ga­ni­zado cro­no­lo­gi­ca­mente per­mite, com uma lei­tura atenta e cui­dada, re­co­nhecer a evo­lução da si­tu­ação po­lí­tica, ver como se mo­di­ficam as si­tu­a­ções em mo­mentos crí­ticos e como é fun­da­mental não perder de vista o es­sen­cial, algo que se acentua ainda mais quando os pe­ríodos são mais curtos. Sobre a cisão do mo­vi­mento co­mu­nista in­ter­na­ci­onal ou sobre o fra­casso da pe­res­troika, por exemplo, o es­sen­cial – a ne­ces­si­dade de pre­servar e re­forçar a uni­dade do mo­vi­mento co­mu­nista in­ter­na­ci­onal, no pri­meiro caso, e a va­li­dade do so­ci­a­lismo, no se­gundo – está pre­sente em todos os textos, mesmo com todas as al­te­ra­ções que ocorrem.

Em ter­ceiro lugar, porque há uma den­si­dade nos textos que pos­si­bi­lita vá­rios en­si­na­mentos, pois estes foram es­critos à luz do mar­xismo-le­ni­nismo, essa «te­oria que não só ex­plica o mundo mas in­dica (como um guia para acção) a ne­ces­si­dade, a pos­si­bi­li­dade e o ca­minho para trans­formá-lo». Uma ori­en­tação justa exige re­co­nhecer que «as re­vo­lu­ções não se co­piam, nem se imitam, nem se en­co­mendam, nem se fazem se­gundo re­ceitas e cli­chés» mas si­mul­ta­ne­a­mente que isso não sig­ni­fica pro­curar apri­o­ris­ti­ca­mente «uma “ori­gi­na­li­dade” e um “mo­delo” pró­prio do so­ci­a­lismo, que pre­tenda afastar-se das leis ob­jec­tivas, das ex­pe­ri­ên­cias his­tó­ricas, dos traços fun­da­men­tais co­muns de todas as re­vo­lu­ções so­ci­a­listas».

Um rico pa­tri­mónio

Em quarto lugar, porque ao ler estes textos es­tamos também a es­tudar a his­tória do PCP, porque ela «está in­dis­so­lu­vel­mente li­gada à vi­tória de Ou­tubro, às ex­pe­ri­ên­cias do pro­le­ta­riado russo e do seu par­tido», e a his­tória da luta do povo por­tu­guês, também ela «in­dis­so­ciável das re­a­li­za­ções e vi­tó­rias his­tó­ricas da URSS, do seu apoio e so­li­da­ri­e­dade ins­pi­rados pelos ideais do in­ter­na­ci­o­na­lismo pro­le­tário». Uma his­tória que, fa­zendo parte do seu pa­tri­mónio, se ins­creve no seu «pro­jecto po­lí­tico pro­jec­tado para o fu­turo», fu­turo esse que «aca­bará por ser não do ca­pi­ta­lismo mas do ideal dos co­mu­nistas».

Em quinto lugar, estes textos, como acon­tece nos clás­sicos do mar­xismo-le­ni­nismo, são para o nosso tempo e para a luta de hoje. Con­tinua vá­lida a tese de que «o co­nhe­ci­mento, o es­tudo, a di­vul­gação das re­a­li­za­ções, das vi­tó­rias, das ex­pe­ri­ên­cias, da re­a­li­dade dos países so­ci­a­listas cons­ti­tuem ele­mento de alto valor para ga­nhar as massas». Mesmo sa­bendo que, «para a re­a­li­dade por­tu­guesa, temos so­lu­ções por­tu­guesas, cor­res­pon­dentes às con­di­ções do nosso País e às as­pi­ra­ções e von­tade do nosso povo» – até porque «uma so­ci­e­dade so­ci­a­lista só pode ser cons­truída pela acção re­vo­lu­ci­o­nária e o em­pe­nha­mento dos tra­ba­lha­dores e das massas po­pu­lares, nunca sem esse em­pe­nha­mento e muito menos contra a sua von­tade».

E se estas cinco ra­zões não bas­tarem, acres­cen­tamos uma sexta que não é menos ver­da­deira: é um ge­nuíno prazer ler e reler Álvaro Cu­nhal. A cada pá­gina, essa per­sis­tente ma­ra­vilha de se estar mais forte.