Romeu Correia – O vagabundo com mãos de povo

Domingos Lobo

Romeu Hen­rique Cor­reia nasceu em Ca­ci­lhas a 17 de No­vembro de 1917. Forte­mente li­gado às tra­di­ções po­pu­lares e às co­lec­ti­vi­dades da sua margem sul, a Al­mada que o via per­correr, pelas tardes so­a­lheiras, as ruas com his­tória da ci­dade velha, ou em ter­tú­lias à mesa do Café Cen­tral, ou nas noites de ci­nema na Aca­demia Al­ma­dense, não podia perder esse vín­culo ini­ciá­tico de re­beldia po­pular que eram as an­tigas ce­gadas car­na­va­lescas.

Um autor que foi um al­qui­mista de afectos mas que tinha a fa­cul­dade única de tornar os so­nhos fe­cundos e pe­renes

         

Mestre Al­bino (em­ba­lando os far­rapos da bo­neca): A minha mãe era alen­te­jana. Grande mu­lher!... Grande mu­lher no ta­manho e na alma! Cha­mavam-lhe a Joana do Paco... Acom­pa­nhava o meu ve­lhote de noite, cor­rendo o mesmo risco... (sor­rindo) Lembro-me de ir uma vez em­bru­lhado em seda!...

in O Va­ga­bundo das Mãos de Ouro (5ª. edição)

 

O dra­ma­turgo co­meça nesse chão do mais ge­nuíno, sa­tí­rico e gro­tesco modo de es­con­juro e me­dievo acinte, de es­cárnio e mal­dizer, onde toda a li­ber­dade era pos­sível, que a ge­ni­a­li­dade de mestre Gil nos legou. E que o fas­cismo, ob­vi­a­mente, acabou por proibir.

Para traçar o per­curso cri­a­tivo de Romeu Cor­reia é pre­ciso, pois, re­cuar aos fi­nais dos anos 30, quando co­meçou a es­crever farsas car­na­va­lescas, em 1938, sendo Razão a sua peça de es­treia, re­pre­sen­tada pela pri­meira vez em 1940 por um grupo de te­atro de ama­dores, em Al­mada. Es­pec­tador te­a­tral as­síduo, foi so­bre­tudo no Te­atro Es­túdio do Sa­litre que ab­sorveu as vá­rias ten­dên­cias es­té­ticas mo­dernas e con­tem­po­râ­neas que são vi­sí­veis nas suas peças num acto: Lau­rinda (1949), que a re­vista Vér­tice pu­bli­caria nesse mesmo ano, As cinco vo­gais (1951) e Des­porto- rei (1955).

A re­pre­sen­tação de uma das suas peças pelo Grupo de Ama­dores da So­ci­e­dade Gui­lherme Cos­soul, então uma das mais im­por­tantes es­colas po­pu­lares de ac­tores, deu-lhe o es­tí­mulo para es­crever Ca­saco de Fogo (1953), pu­bli­cada pela pri­meira vez em 1956, peça que o le­vará, dos pri­meiros ar­roubos neo-re­a­listas, a um sim­bo­lismo ex­pres­sivo que lhe ser­virá para des­crever e de­finir, com sub­jec­tivo re­a­lismo, a vida nos bairros po­bres. Esta peça foi le­vada à cena em 1953 pelo Te­atro Na­ci­onal D. Maria II, com en­ce­nação de Pedro Lemos e con­tando no elenco com nomes ci­meiros do nosso te­atro, como Au­gusto Fi­guei­redo, Carmen Do­lores, Aura Abran­ches e Luís Fi­lipe. Se­guiram-se os três actos de O Céu da Minha Rua, texto onde a lin­guagem da re­vista con­vive com o tom de co­média pí­cara e de cos­tumes, foi en­ce­nado em 1955, no Te­atro Maria Vi­tória, com o tí­tulo Isaura, a Ga­li­nheira (a partir deste texto a RTP adap­tará uma série com o tí­tulo O Céu da Minha Rua, que teve enorme êxito nos anos 1960, con­tando com a par­ti­ci­pação de Amália Ro­dri­gues que nela in­ter­pre­tava um fado com o tí­tulo ho­mó­nimo, que à época se tornou po­pular). Sol na flo­resta (pu­bli­cada em 1968 no vo­lume Três peças de Romeu Cor­reia, jun­ta­mente com Lau­rinda e O Céu da Minha Rua) e O va­ga­bundo das Mãos de Ouro (1960), sendo estas úl­timas le­vadas à cena res­pec­ti­va­mente em 1957 e em 1962 pelo Te­atro Ex­pe­ri­mental do Porto (com­pa­nhia que, em 1968, se propôs uma nova mon­tagem de Des­porto Rei).

O va­ga­bundo das Mãos de Ouro, farsa poé­tico-po­lí­tica em três actos, a mais im­por­tante e re­pre­sen­tada peça de Romeu Cor­reia, re­cebeu, aquando da es­treia, o Prémio da Crí­tica de Te­atro, em 1962. A peça teve êxito também junto dos lei­tores, tendo sido ob­jecto de vá­rias re­e­di­ções, bem como de tra­du­ções para alemão (foi in­cluída na an­to­logia or­ga­ni­zada por José Luís de Freitas Branco, Di­alog Stücke aus Por­tugal: San­ta­reno, Cou­tinho, Re­bello, Cor­reia, Berlim, 1978) e ita­liano (na an­to­logia, Te­atro por­toghese de XX se­colo, Roma, 2001) e um re­sumo da sua peça Ro­berta foi pu­bli­cado no di­ci­o­nário te­a­tral Der Schaus­field Führer, de Es­tu­garda. Obras suas, so­bre­tudo os ro­mances e contos, estão tra­du­zidos em checo, hún­garo, chinês e na an­tiga Ale­manha De­mo­crá­tica (RDA).

Ex­pres­sões ar­tís­ticas po­pu­lares

Se o texto se­guinte, Jan­gada (1962), farsa em dois actos apre­sen­tada em 1966 no Te­atro Vil­laret pela Com­pa­nhia Por­tu­guesa de Co­me­di­antes, se con­cen­trava nos pre­con­ceitos e con­flitos ge­ra­ci­o­nais, em Bo­cage (1965) é a vida do poeta e o seu tempo, a pa­rá­bola do poeta mal­dito, tor­nando-o em­blema da de­ca­dência so­cial e po­lí­tica, da so­ci­e­dade por­tu­guesa sob o jugo fas­cista. Da vasta pro­dução dra­ma­túr­gica de Romeu Cor­reia é de re­ferir Amor de Per­dição (1966) «glosa dra­má­tica» re­di­gida por en­co­menda a partir do ro­mance ho­mó­nimo de Ca­milo Cas­telo Branco; O Cravo Es­pa­nhol (1969), peça re­pre­sen­tada em 1970 no Te­atro Ca­pi­tólio e re­posta em 2017, pela Com­pa­nhia Te­atro da Terra, numa en­ce­nação de Maria João Luís, in­cluída nas co­me­mo­ra­ções do cen­te­nário de Romeu Cor­reia. Peça em que a de­ri­vantes da cul­tura e tra­di­ções po­pu­lares, as suas me­mó­rias de me­nino, estão pa­tentes e que o pró­prio autor de­fine deste modo:

«Assim, com o tempo, con­se­guimos fundir o que de vagas re­cor­da­ções trou­xemos da in­fância com o belo da idade adulta saído do génio cri­ador dos seus au­tores, que para o caso de O Cravo Es­pa­nhol foram: al­gumas fi­guras dos sal­tim­bancos do Pi­casso do pe­ríodo rosa; a Pau­lette God­dard, a da idade do ves­tido-trapo, quando esta per­so­ni­fi­cava o fruto-ju­ven­tude co­lhido por Cha­plin; a Anna Mag­nani de al­guns filmes neo-re­a­listas ita­li­anos do após-guerra; o clima pa­té­tico dos va­ga­bundos-com-um-sonho-dentro de A Es­trada, de Fel­lini, e todo o sor­ti­légio que, fe­liz­mente, ainda sur­pre­en­demos para nosso re­galo nas feiras, ro­ma­rias, exi­bi­ções de fan­to­ches, nos dias de Circo, nos pan­to­mi­neiros-ven­de­dores-da-banha-da-cobra (que arte e que poder de co­mu­ni­cação têm al­guns destes tipos!); tudo isto, di­zíamos nós, o pas­sado e o pre­sente muito bem di­ge­ridos no al­mo­fariz-da-vida, creio ter sido a teia-mestra da nossa farsa-trá­gica. Farsa-trá­gica, um con­flito de amor e frus­tração ba­seado nas ce­gadas car­na­va­lescas dos anos vinte. His­tória di­a­lo­gada numa lin­guagem di­recta e rude, sem papas na língua, como acon­tecia nos es­pec­tá­culos de rua desses tempos.» Eis, neste texto, o re­sumo mag­ní­fico do uni­verso sen­si­tivo que levou Cor­reia a pro­duzir um te­atro que en­tronca todo ele no acervo me­mo­ri­a­lís­tico e no mais ge­nuíno das ex­pres­sões ar­tís­ticas po­pu­lares.

A peça Ro­berta (1971), ins­pi­rada nas an­tigas feiras e nos tra­di­ci­o­nais ro­bertos, ma­ri­o­netas que aqui en­carnam tipos hu­manos, tal como acon­tece na sua obra maior O Va­ga­bundo das Mãos de Ouro, foi le­vada à cena pelo Te­atro Es­túdio do Bar­reiro, em 1972, e dis­tin­guida nesse mesmo ano com o Prémio da Casa da Im­prensa. A vaga (1977); Grito no Ou­tono (1980); As quatro es­ta­ções (1980), foram peças en­co­men­dadas pela Se­cre­taria de Es­tado da Cul­tura e des­ti­nadas a ver­sões para a te­le­visão. São peças que re­flectem um po­si­ci­o­na­mento mais ac­tu­ante e crí­tico do autor, face à re­a­li­dade po­lí­tica e so­cial, que ex­pressam o seu em­penho na de­fesa dos di­reitos dos grupos so­ci­al­mente ex­cluídos e mar­gi­nais; Tempos di­fí­ceis (1982), le­vada à cena no mesmo ano pelo Grupo de Te­atro de Cam­po­lide, di­ri­gido por Jo­a­quim Be­nite, ini­ci­al­mente in­ti­tu­lada Re­ta­guarda, peça ba­seada nos acon­te­ci­mentos que, em 1958, en­vol­viam a can­di­da­tura às elei­ções pre­si­den­ciais do ge­neral Hum­berto Del­gado, e as es­pe­ranças de al­te­ração po­lí­tica que essa can­di­da­tura re­pre­sen­tava no con­texto das forças de opo­sição ao re­gime; O an­da­rilho das sete par­tidas (1983), sá­tira co­me­mo­ra­tiva do IV cen­te­nário da morte de Fernão Mendes Pinto e em parte ba­seado nas suas Pe­re­gri­na­ções, as vi­vidas e as in­ven­tadas, por terras do Ori­ente; A pal­ma­tória (1995), farsa trá­gica sobre a fi­gura do poeta sa­tí­rico se­te­cen­tista Ni­colau To­len­tino, também ele um poeta de crí­tica mordaz na des­mon­tagem dos cos­tumes dis­so­lutos do seu tempo (o sé­culo XVIII) e um sá­tiro de afiado verbo.

De sa­li­entar, no con­curso de toda a sua vasta obra, a adap­tação te­a­tral, feita por en­co­menda em 1968, e ainda iné­dita, do ro­mance po­pular A rosa do Adro (1870), de Ma­nuel Maria Ro­dri­gues. Em 1976, foi-lhe atri­buído o Prémio Ri­cardo Ma­lheiros, con­ce­dido pela Aca­demia das Ci­ên­cias de Lisboa, pelo seu livro de contos Um Passo em Frente e em 1984 re­cebe o "Prémio de Te­atro 25 de Abril" atri­buído pela As­so­ci­ação Por­tu­guesa de Crí­ticos de Te­atro.

Romeu Cor­reia per­tence, diz-nos Óscar Lopes, ao grupo de au­tores que a partir dos anos 1940, pro­cu­raram im­primir ao te­atro por­tu­guês uma ori­en­tação re­a­lista e de es­tru­tura mais ima­gi­na­tiva. E mais afirma Óscar Lopes: O Va­ga­bundo das Mãos de Ouro, foi, em 1961, a me­lhor con­sa­gração dra­ma­túr­gica de Romeu Cor­reia. Na linha de ex­pe­ri­ên­cias an­te­ri­ores, in­tegra na tra­dição re­a­lista um con­junto de re­cursos que vêm do ex­pres­si­o­nismo, da tra­dição po­pular (ro­man­ceiro e fan­to­ches) e do an­ti­te­atro, ele­vando sen­si­vel­mente o nível a uma car­reira, in­di­vi­dual de te­atro, ro­mance e conto, que até então se po­deria clas­si­ficar fun­da­men­tal­mente de po­pu­lista mas que pro­grediu no sen­tido de um ima­gi­na­tivo neo-re­a­lista.1

Re­no­vação do te­atro por­tu­guês

Em 1946, com a cri­ação do Te­atro-Es­túdio do Sa­litre, de Luís Fran­cisco Re­bello, entre ou­tros, jo­vens ac­tores e dra­ma­turgos aco­li­tados a um en­saísta de re­nome (Gino Sa­vi­otti – que lec­ci­o­nava no Con­ser­va­tório Na­ci­onal de Te­atro, a ca­deira de Fi­lo­sofia do Te­atro), houve a es­pe­rança de que um novo tempo sur­giria para o Te­atro Por­tu­guês. Nesse es­paço foi pos­sível ver re­pre­sen­tadas peças de Re­bello, Vasco Men­donça Alves, Bran­quinho da Fon­seca, Pedro Bom, Alves Redol, Romeu Cor­reia e Ro­drigo de Melo, al­guns deles es­tre­antes na função.

Mas o que pro­metia ser um mo­vi­mento de van­guarda para o nosso te­atro, e para a nossa dra­ma­turgia em par­ti­cular, não passou de fogo-fátuo. Pri­meiro, a cen­sura, com o seu ha­bi­tual cerco cas­trador a tudo o que res­su­masse laivos de mo­der­ni­dade e in­te­li­gência, de­pois, as sempre eternas di­fi­cul­dades eco­nó­micas para es­ta­be­lecer um pro­jecto con­ti­nuado e du­ra­douro. Assim, ficou por terra um pro­jecto ver­da­dei­ra­mente novo, au­tó­nomo, in­ven­tivo e con­se­quente para o nosso te­atro e para a cons­ti­tuição de uma dra­ma­turgia por­tu­guesa aberta às ten­dên­cias que na Eu­ropa do pós-guerra co­me­çavam a abrir ca­mi­nhos do novo te­atro: Te­atro da Cru­el­dade, Te­atro Épico, An­ti­te­atro, Te­atro do Ab­surdo e o Te­atro Do­cu­mento.

Igual­mente, em 1947, surgem al­guns textos en­saís­ticos, na re­cen­te­mente criada re­vista Vér­tice, de Coimbra, no­me­a­da­mente sobre o te­atro de Fe­de­rico Garcia Lorca. É nessa re­vista, que Luís Fran­cisco Re­bello se re­fere, com en­tu­si­asmo, ao te­atro de Ar­mand Sa­la­crou, e à sua peça Les nuits de la co­lére. Também Jo­a­quim de Oli­veira se re­fere, nas pá­ginas da re­fe­rida re­vista, «à si­tu­ação ca­tas­tró­fica do te­atro por­tu­guês», de­fen­dendo a cri­ação de um mo­vi­mento re­for­mador que con­fira ao te­atro a sua «ver­da­deira missão», tal seja a de «agi­tador de cons­ci­ên­cias». É nessa linha, se­guindo uma sín­tese, es­tru­tu­rada com hábil sa­geza, entre o re­a­lismo, o ex­pres­si­o­nismo e o an­ti­te­atro, mas sem se afastar da sua ori­ginal ten­dência neo-re­a­lista, no dizer de Re­bello, que Romeu Cor­reia cons­truirá, a partir de fi­nais dos anos 1930, uma das mais pu­jantes e re­pre­sen­tadas obras dra­má­ticas da se­gunda me­tade do sé­culo XX.

Al­gumas das peças de Romeu Cor­reia não dei­xaram de per­correr esse uni­verso de todas as in­cur­sões e se­du­ções dra­ma­túr­gicas dos nossos es­cri­tores de te­atro nos anos 1960: o Te­atro Épico, de raiz bre­ch­tiana. Em Romeu Cor­reia, en­con­tramos esse pro­cesso cri­a­tivo em peças como Bo­cage (1965) e em Amor de Per­dição (1966). Ou­tros, na mesma linha es­té­tico-ide­o­ló­gica per­cor­reram ca­mi­nhos afins: José Car­doso Pires, com O Render dos He­róis; Luís de Sttau Mon­teiro, com Fe­liz­mente Há Luar; Maria Luzia Mar­tins, com Bo­cage, Alma sem Mundo; Mi­guel Franco, O Motim (que a cen­sura fas­cista proi­biria logo após a es­treia) e essa obra-prima que é O Judeu, de Ber­nardo San­ta­reno.

Anos vol­vidos, fi­nais de 1950, no Porto, An­tónio Pedro ini­ciava um dos mais du­ra­douros e pro­fí­cuos mo­vi­mentos te­a­trais da 1.ª me­tade do sé­culo XX e parte da 2.ª com a cri­ação do Te­atro Ex­pe­ri­mental do Porto. Um in­te­lec­tual vindo das fi­leiras ide­o­ló­gicas do sa­la­za­rismo, das hostes do da­daísmo luso, mas con­ver­tido – após uma es­tadia em Lon­dres – aos ideais so­ci­a­li­zantes, nesse Por­tugal pos­sível, no dizer de Ruy Belo, pro­punha, numa ci­dade bur­guesa e de traços for­te­mente con­ser­va­dores, um modo outro de en­tender o Te­atro e de no-lo dar a ver. Num pe­queno es­túdio, com meios ín­fimos, An­tónio Pedro en­cenou Torga, San­ta­reno, Re­bello, Fran­cisco Ven­tura, An­tónio José da Silva, e duas das mais im­por­tantes peças de Romeu Cor­reia: Sol na Flo­resta, e O Va­ga­bundo das Mãos de Ouro, pro­pondo-se ainda en­cenar uma nova versão de Des­porto-Rei, o que não se veio a con­cre­tizar.

A Com­pa­nhia Rei Co­laço – Ro­bles Mon­teiro, para além da mon­tagem de O Ca­saco de Fogo, levou à cena em 1970, já no te­atro Ca­pi­tólio (de­pois dos in­cên­dios do D. Maria II e te­atro Ave­nida), a peça de Cor­reia O Cravo Es­pa­nhol, de novo com en­ce­nação de Pedro Lemos e in­ter­pre­ta­ções de Va­rela Silva, Ro­gério Paulo, Pedro Lemos, Ce­cília Gui­ma­rães, Hen­ri­queta Maya e Glória de Matos.

As mãos do povo

Ainda no âm­bito das co­me­mo­ra­ções do cen­te­nário de nas­ci­mento de Romeu Cor­reia, e com o pa­tro­cínio da Câ­mara Mu­ni­cipal, a Com­pa­nhia de Te­atro de Al­mada, com uma bri­lhante en­ce­nação e adap­tação te­a­tral de Ro­drigo Fran­cisco, montou no Fórum Mu­ni­cipal Romeu Cor­reia/​Au­di­tório Fer­nando Lopes-Graça, Bo­necos de Luz, a partir do ro­mance do autor de Sá­bado Sem Sol. De Romeu Cor­reia, a mesma Com­pa­nhia montou, numa en­ce­nação de Jo­a­quim Be­nite, a peça Tempos Di­fí­ceis, que atingiu mais de cem re­pre­sen­ta­ções.

Bo­necos de Luz, esse bri­lhante e lí­rico ro­mance das se­du­ções da in­fância, sobre as in­cur­sões ren­didas de um rapaz pelo mundo má­gico dos bo­necos ani­mados, é um dos mais belos, pí­caros e nos­tál­gicos li­vros, a par de As Aven­turas Ma­ra­vi­lhosas de João Sem Medo, de José Gomes Fer­reira, que a nossa li­te­ra­tura pro­duziu no sé­culo XX.

Para além da es­crita Romeu Cor­reia pra­ticou boxe e atle­tismo nos anos 30 e 40 e sua mu­lher, Al­me­rinda Cor­reia, foi, por di­versas vezes, campeã de Por­tugal em atle­tismo.

Quem vive num cais à beira de um rio na­ve­gável ouve com frequência o apito dis­tante ou perto de na­vios e o grasnar das aves ma­ri­nhas... diz-nos ele nas in­di­ca­ções que es­creveu para a peça Jan­gada. Os sons do seu Cais do Ginjal, a vida, o mo­vi­mento, os so­nhos e a me­mória da sua Al­mada, das gentes da outra banda, a que ele deu vida, es­pes­sura, mesmo que na fi­gura gro­tesca de um ma­ni­pu­lador de ro­bertos, mesmo num pa­lhaço de pés largos, passos sin­co­pados e ben­gala ro­lando entre a fa­lange e a fa­lan­geta, acom­pa­nhado por um ga­roto ves­tido de an­drajos, bri­lhando in­ter­mi­tentes num lençol se­boso como ab­cessos im­pro­vá­veis; um autor que foi um al­qui­mista de afectos mas que tinha a fa­cul­dade única de tornar os so­nhos fe­cundos e pe­renes. Um va­ga­bundo que tinha as mãos do povo, que são de ouro como se sabe, ca­pazes de trans­formar os Sá­bados sem Sol, em do­mingos de Fogo e Luz.

 

1 Óscar Lopes, His­tória da Li­te­ra­tura Por­tu­guesa, p.1172, 8ª. edição

 

APOIOS: Obras de Romeu Cor­reia; Pre­fácio de Ma­nuel Deniz Ja­cinto à 5ª. edição de O Va­ga­bundo das Mãos de Ouro; Luís Fran­cisco Re­bello, His­tória do Te­atro Por­tu­guês; Óscar Lopes, His­tória da Li­te­ra­tura Por­tu­guesa; Textos do Centro de Es­tudos de Te­atro.