Dia Mundial da Ciência Pela Paz e o Desenvolvimento

Frederico Carvalho

AM­BI­ENTE O Dia Mun­dial da Ci­ência pela Paz e o De­sen­vol­vi­mento é uma ini­ci­a­tiva das Na­ções Unidas lan­çada há já 16 anos pela UNESCO – a agência da ONU vol­tada para as ques­tões da Edu­cação, da Ci­ência e da Cul­tura.

O mundo não pode ser salvo sem as mu­lheres e há mesmo quem pense e diga que serão as mu­lheres a salvar o mundo.

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Todos os anos, no dia 10 de No­vembro, a UNESCO in­cen­tiva as au­to­ri­dades e os ci­da­dãos em geral em todos os es­tados mem­bros a pro­mover ou sim­ples­mente par­ti­cipar em ac­ções de di­versa na­tu­reza que visem des­pertar a cons­ci­ência para a li­gação ín­tima entre Ci­ência, Paz e De­sen­vol­vi­mento.

Afirmar essa li­gação é uma ne­ces­si­dade do nosso tempo em que os povos en­frentam sé­rias ame­aças à pró­pria so­bre­vi­vência na nossa Terra mãe. Tempo também em que o grande ca­pital que sus­tenta as cor­po­ra­ções mul­ti­na­ci­o­nais co­biça e apro­pria-se dos re­cursos na­tu­rais mais va­li­osos onde quer que se en­con­trem in­di­fe­rente às con­di­ções de vida das po­pu­la­ções que se de­gradam e aos im­pactos am­bi­en­tais sobre o meio na­tural. Fá-lo em con­luio com po­deres lo­cais que lhe são sub­ser­vi­entes e, onde os não en­contra, não he­sita em re­correr à sub­versão e à guerra, di­rec­ta­mente ou por pro­cu­ração, sempre com enormes custos hu­manos e ma­te­riais.

Onde então entra a Ci­ência nisto tudo? Todos nós, mu­lheres e ho­mens, ci­da­dãos co­muns, aper­ce­bemo-nos na­tu­ral­mente dos ex­tra­or­di­ná­rios be­ne­fí­cios que os avanços da ci­ência e as suas apli­ca­ções téc­nicas trazem ao nosso dia-a-dia – os pro­gressos da me­di­cina, a fa­ci­li­dade de co­mu­ni­carmos entre nós e a pos­si­bi­li­dade de nos in­for­marmos, em casa ou no tra­balho, do que se vai pas­sando à nossa volta, na nossa terra e no mundo, de nos des­lo­carmos mais rá­pida e co­mo­da­mente, de um local para outro e co­nhecer novas terras, novas formas de es­tudar e aprender, na es­cola e ao longo da vida, e tantas coisas mais.

De tudo isto temos cons­ci­ência – é a face boa da ci­ência e da téc­nica, ci­ência e téc­nica que se foram cons­truindo ao longo de ge­ra­ções e gra­du­al­mente ace­le­rando o ritmo dos seus avanços. To­davia a ci­ência e a téc­nica podem ter, sempre ti­veram e têm, apli­ca­ções per­versas de que muitos de nós se aper­ce­beram e aper­cebem todos os dias. Foram pes­soas como nós que des­truíram vilas e ci­dades com os ar­ma­mentos mais aper­fei­ço­ados que lhes pu­seram nas mãos, em­pur­radas para um des­tino in­feliz por forças po­de­rosas. Ao olhar agora para a outra face da ci­ência – a ci­ência do mal – vol­tamos a en­con­trar o monstro do grande ca­pital para o qual o ob­jec­tivo do lucro e a acu­mu­lação pri­vada da ri­queza criada pelo tra­balho hu­mano é o fim úl­timo sempre pre­sente, nas de­ci­sões que toma, nas guerras que fo­menta, no tra­balho ci­en­tí­fico que fi­nancia. Os países go­ver­nados – é esse o termo – pelo grande ca­pital pri­vado ze­lador dos in­te­resses das cor­po­ra­ções apá­tridas que co­manda, in­vestem meios hu­manos, ma­te­riais e fi­nan­ceiros na in­ves­ti­gação ci­en­tí­fica para fins mi­li­tares que fre­quen­te­mente ul­tra­passam os meios des­ti­nados à in­ves­ti­gação em áreas fun­da­men­tais para o pro­gresso e bem-estar so­cial, desde logo na saúde e edu­cação mas também na de­fesa e pre­ser­vação da na­tu­reza, no com­bate às al­te­ra­ções cli­má­ticas, ou nas ener­gias re­no­vá­veis.

A de­si­gual­dade na dis­tri­buição da ri­queza, hoje, no mundo, atingiu ní­veis in­su­por­tá­veis: o equi­va­lente a me­tade da ri­queza de todo o pla­neta está nas mãos de oito pes­soas. Passam fome 800 mi­lhões de seres hu­manos; quase 300 mi­lhões de cri­anças estão sub­nu­tridas. Por ano, a morte de cerca de três mi­lhões de cri­anças com menos de cinco anos é atri­buída à sub­nu­trição.

No­venta por cento da­queles que vivem abaixo do nível con­si­de­rado de po­breza en­con­tram-se na Ásia, na África Sub­sa­riana, na Amé­rica La­tina e nas Ca­raíbas.

A re­volta que este quadro som­brio deve sus­citar acentua-se com outro as­pecto da re­a­li­dade que é o facto de cerca de 10% do pro­duto in­terno bruto (PIB) mun­dial estar res­guar­dado em pa­raísos fis­cais, uma in­te­res­sante cri­ação do ca­pital pre­dador.

O papel da edu­cação

Neste ano de 2017, o tema es­co­lhido para o Dia Mun­dial da Ci­ência pela Paz e o De­sen­vol­vi­mento foi «A Ci­ência para um En­ten­di­mento Global», re­flec­tindo a ne­ces­si­dade de con­gregar von­tades e tra­ba­lhar em con­junto para a re­so­lução dos grandes pro­blemas com que os povos e o mundo se de­frontam. Na men­sagem que tornou pú­blica nessa oca­sião, Irina Bo­kova, di­rec­tora-geral da UNESCO e a pri­meira mu­lher a ocupar esse cargo, apontou al­guns da­queles que são em seu en­tender esses pro­blemas e su­bli­nhou a im­por­tância das Ci­ên­cias e da Tec­no­logia na pro­cura de res­postas-chave para a cons­trução da Paz e a pro­moção de um de­sen­vol­vi­mento sus­ten­tável. A pró­pria na­tu­reza dos de­sa­fios que en­fren­tamos, como a gestão da água, o uso sus­ten­tável dos oce­anos, a pro­tecção dos ecos­sis­temas e da bi­o­di­ver­si­dade, a adap­tação às al­te­ra­ções do clima e a res­posta aos de­sas­tres na­tu­rais, exige uma abor­dagem in­te­grada en­vol­vendo os vá­rios do­mí­nios do co­nhe­ci­mento ci­en­tí­fico e res­postas ino­va­doras. Uma tal abor­dagem, antes de mais, exige da parte dos res­pon­sá­veis po­lí­ticos o re­co­nhe­ci­mento do papel da Ci­ência e dos tra­ba­lha­dores ci­en­tí­ficos na pro­cura de res­postas efi­cazes vi­sando a su­pe­ração das ame­aças exis­tentes, o que exige, à par­tida, a exis­tência de uma po­lí­tica ci­en­tí­fica na­ci­onal as­sente num de­bate alar­gado e cons­truída em diá­logo com a co­mu­ni­dade ci­en­tí­fica.

A His­tória en­sina-nos e a ac­tual si­tu­ação do mundo con­firma-o, que a edu­cação tem um papel de­ci­sivo nos pro­cessos de trans­for­mação so­cial. Isso mesmo é su­bli­nhado na men­sagem de Irina Bu­kova atrás re­fe­rida quando chama a atenção para uma ini­ci­a­tiva pi­o­neira da UNESCO di­ri­gida no sen­tido de pro­mover a co­o­pe­ração ci­en­tí­fica a nível global, en­co­ra­jando, si­mul­ta­ne­a­mente, ac­ções lo­cais ou re­gi­o­nais, fo­cada em duas pro­ble­má­ticas-chave: a igual­dade dos gé­neros e África. Neste con­texto, a UNESCO lançou no cor­rente ano um sim­pósio in­ter­na­ci­onal ino­vador e um fórum de de­bate po­lí­tico, sobre o tema «edu­cação das jo­vens mu­lheres no do­mínio das ci­ên­cias, da tec­no­logia, da en­ge­nharia e da ma­te­má­tica». Desta forma pro­cura a UNESCO con­tri­buir para o com­bate que é es­sen­cial travar às enormes de­si­gual­dades de gé­nero que se ve­ri­ficam na­quelas áreas de co­nhe­ci­mento nos países do Sul, no­me­a­da­mente em África. O mundo não pode ser salvo sem as mu­lheres e há mesmo quem pense e diga que «serão as mu­lheres a salvar o mundo».

As de­si­gual­dades de gé­nero devem ser uma pre­o­cu­pação global quando se fala na Paz e no de­sen­vol­vi­mento. Pre­sente em di­fe­rentes formas e graus em todas as partes do mundo são par­ti­cu­lar­mente acen­tu­adas nos países ditos «em de­sen­vol­vi­mento» e nestes so­bre­tudo nos mais po­bres, que são si­mul­ta­ne­a­mente os mais vi­o­len­ta­mente ex­plo­rados pelo grande ca­pital as­so­ciado às grandes cor­po­ra­ções mul­ti­na­ci­o­nais.

Quando se afirma a im­por­tância da ci­ência e da tec­no­logia para o de­sen­vol­vi­mento e a paz im­porta dizer que o grande ca­pital pri­vado e as suas cor­po­ra­ções se servem da ci­ência e da tec­no­logia única e ex­clu­si­va­mente quando isso serve os seus in­te­resses egoístas. Fora disso vão ao ex­tremo de negar os pró­prios factos ci­en­tí­ficos que en­tendem não servir esses in­te­resses, não he­si­tando mesmo em de­sa­cre­ditar as fontes que os trazem a pú­blico. Pes­soas e ins­ti­tui­ções res­pei­tá­veis são alvo de per­se­gui­ções ou de boi­cote quando se mos­tram de­sa­li­nhadas ou quando de­nun­ciam crimes am­bi­en­tais como a des­flo­res­tação mas­siva na Ama­zónia ou na In­do­nésia, por exemplo. No com­plexo quí­mico-in­dus­trial, em que se dis­tin­guem cor­po­ra­ções gi­gantes como a Mon­santo ou a Bayer (que re­cen­te­mente ad­quiriu a pri­meira) são de­nun­ci­adas prá­ticas cri­mi­nosas contra o meio na­tural e a saúde pú­blica, tra­zidas à luz do dia por ci­en­tistas co­ra­josos que são ex­pulsos e per­se­guidos. Noutra área, a dos ar­ma­mentos, o «ca­pi­ta­lismo de de­sastre» pros­pera graças às en­co­mendas pú­blicas de ma­te­rial de guerra em cons­tante pro­cesso de so­fis­ti­cação. E nas altas es­feras da po­lí­tica apa­recem cai­xeiros-vi­a­jantes em­pe­nhados em con­se­guir mais e me­lhores en­co­mendas de ar­ma­mentos junto das elites go­ver­nantes de es­tados «mal-ar­mados». Um exemplo edi­fi­cante é o das re­centes vi­sitas de Do­nald Trump, ao Médio Ori­ente e ao Su­este Asiá­tico.

Opor­tu­ni­dade de diá­logo

A ne­gação da Ci­ência a que se fez alusão acima, pode en­con­trar-se em países de­sen­vol­vidos mas cujo grau de cul­tura é me­díocre. Nos meios do grande ca­pital pri­vado, a ne­gação da Ci­ência é fre­quen­te­mente hi­pó­crita. Nega-se factos ci­en­tí­ficos porque pre­ju­dicam in­te­resses po­lí­ticos ou eco­nó­micos. Daí o aban­dono pelos EUA do Acordo de Paris sobre mu­danças cli­má­ticas. Daí o li­mi­tado in­ves­ti­mento nas ener­gias re­no­vá­veis a par da pro­moção da ex­tracção e queima de carvão e pe­tróleo. E ou­tros exem­plos po­derão apontar-se. En­tre­tanto, in­veste-se for­te­mente na in­ves­ti­gação para fins mi­li­tares, em novas armas e novas formas de guerra, como a guerra ci­ber­né­tica ou os cha­mados «robôs as­sas­sinos» que são sis­temas de ar­ma­mentos com ca­pa­ci­dade de de­cisão au­tó­noma, quer dizer, sem in­ter­venção hu­mana, sobre quem matar, onde e quando.

Em Ou­tubro úl­timo os Es­tados Unidos, pron­ta­mente se­guidos por Is­rael, anun­ci­aram re­tirar-se da UNESCO à qual desde 2011 não pa­gavam a quo­ti­zação que lhes cabia como membro da or­ga­ni­zação. Ale­garam a esse res­peito «um po­si­ci­o­na­mento con­ti­nuado anti-Is­rael» da­quela or­ga­ni­zação. Per­ma­necem en­tre­tanto com o es­ta­tuto de ob­ser­vador.

Irina Bo­kova la­mentou a de­cisão to­mada «num mo­mento em que a luta contra o ex­tre­mismo vi­o­lento impõe re­forçar o in­ves­ti­mento na edu­cação, no diá­logo in­ter­cul­tural como bar­reira contra o ódio», va­lores que estão na raiz da UNESCO, a agência das Na­ções Unidas que pro­move a edu­cação para a Paz e a de­fesa da cul­tura contra os ata­ques que lhe são mo­vidos.

A ini­ci­a­tiva da UNESCO de pro­mover um «Dia Mun­dial da Ci­ência pela Paz e o De­sen­vol­vi­mento» me­rece aplauso e deve ser olhada com sim­patia por todos nós. Im­porta to­davia notar que tanto a UNESCO como a pró­pria Or­ga­ni­zação das Na­ções Unidas estão longe de dispor dos ins­tru­mentos – meios e in­fluência po­lí­tica – que se­riam ne­ces­sá­rios para levar o mundo a tri­lhar ca­mi­nhos di­fe­rentes da­queles que vem se­guindo. En­tre­tanto deve re­co­nhecer-se que para cons­truir as trans­for­ma­ções so­ciais que são in­dis­pen­sá­veis para as­se­gurar um fu­turo sus­ten­tável às so­ci­e­dades hu­manas no pla­neta e a sua pró­pria so­bre­vi­vência, é im­pe­rioso, como disse Bento de Jesus Ca­raça, «des­pertar a alma co­lec­tiva das massas».

Ini­ci­a­tivas como a deste «Dia Mun­dial» são em si mesmo uma opor­tu­ni­dade de diá­logo e apren­di­zagem que deve con­tri­buir para in­te­ri­o­rizar na cons­ci­ência de muitos a gra­vi­dade dos pro­blemas que vi­vemos no nosso mundo e as suas di­versas ori­gens e qua­li­dades.

O mundo ca­minha hoje num sen­tido oposto ao que con­du­ziria à Paz, esta mesma in­dis­pen­sável ao de­sen­vol­vi­mento so­cial, eco­nó­mico e cul­tural dos povos e à cri­ação de con­di­ções que as­se­gurem a con­ti­nu­ação da vida no pla­neta. Não será pos­sível mudar de rumo no quadro do ca­pi­ta­lismo.