Esfir Shub: Mulher, Cineasta, Revolucionária

Sérgio Dias Branco

A obra de Shub con­tri­buiu para a van­guarda ci­ne­ma­to­grá­fica

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Para o Tiago, pela ins­pi­ração

A Re­vo­lução de Ou­tubro de­sen­rolou-se também no campo da arte. No caso do ci­nema, gerou um mo­vi­mento van­guar­dista que marcou a his­tória do mudo tardio até à tran­sição para o so­noro. É es­treita a re­lação entre esta van­guarda ar­tís­tica e a van­guarda po­lí­tica que foi nas­cendo nos con­gressos dos so­vi­etes. Ou­tubro fez ex­plodir o mo­vi­mento de van­guarda ar­tís­tica que havia emer­gido na Rússia nos úl­timos anos do séc. XIX, de­sen­vol­vendo-o até me­ados da dé­cada de 1930. O con­texto so­cial re­vo­lu­ci­o­nário fez brotar e foi ali­men­tando a re­vo­lução no ci­nema.

O cen­te­nário da Re­vo­lução de Ou­tubro é uma oca­sião para ce­le­brar, mas também é uma opor­tu­ni­dade para des­co­brir. Se o letão Sergei Ei­sens­tein e o ucra­niano Dziga Vertov talvez sejam os ci­ne­astas mais co­nhe­cidos das pri­meiras dé­cadas, de ouro, do ci­nema so­vié­tico, Esfir Shub terá que ser con­si­de­rada uma ilustre des­co­nhe­cida. Trata-se da mais im­por­tante ci­ne­asta fe­mi­nina desse pe­ríodo em con­junto com Olga Pre­o­brazhens­kaia. Ana­li­sando a sua obra pi­o­neira, torna-se mais claro que só con­se­guimos fazer sen­tido da van­guarda ci­ne­ma­to­grá­fica que ela in­te­grou se per­ce­bermos a sua pro­funda li­gação com a cons­ci­ência his­tó­rica. Por essa razão, a obra de Shub, que foi pro­fes­sora de mon­tagem nas aulas de Ei­sens­tein no Ins­ti­tuto Es­tatal de Ci­ne­ma­to­grafia fun­dado em 1919, é fun­da­mental.

Shub nasceu em 1894, no seio de uma fa­mília judia de pe­quenos la­ti­fun­diá­rios, na ci­dade de Su­razh, mais tarde parte da Re­pú­blica So­ci­a­lista So­vié­tica da Ucrânia e hoje parte da Fe­de­ração Russa. O seu pai era far­ma­cêu­tico. As posses da fa­mília per­mi­tiram-lhe vi­ajar para Mos­covo, onde es­tudou li­te­ra­tura no Ins­ti­tuto de Edu­cação Su­pe­rior para Mu­lheres. Foi nessa ins­ti­tuição que se en­volveu no mo­vi­mento re­vo­lu­ci­o­nário que ga­nhava ade­rentes entre as jo­vens es­tu­dantes antes de 1917. A partir de 1918, Shub teve ta­refas no De­par­ta­mento de Te­atro do Co­mis­sa­riado do Povo para a Edu­cação. Co­la­borou de­pois com o en­ce­nador Vse­volod Mei­er­gold e o poeta Vla­dimir Mai­a­kovski e apoiou o ma­ni­festo para a re­no­vação do te­atro russo es­crito por Ev­genii Vakh­tangov. Na dé­cada de 1920, es­teve as­so­ciada à re­vista Vestnik Teatr e ao co­nhe­cido Grupo LEF – Frente de Es­querda das Artes. Mai­a­kovski, um dos fun­da­dores do grupo, não es­condia a sua ad­mi­ração pelo tra­balho dela. O pri­meiro filme que Shub montou foi Abrek Zaur (1926), re­a­li­zado por Boris Mikhin, de­di­cando-se a partir dessa data ao ci­nema. Entre 1928 e 1931, a mon­ta­dora-re­a­li­za­dora par­ti­cipou no grupo cons­tru­ti­vista Ou­tubro. Morreu em 1959, dei­xando vá­rios pro­jectos por fi­na­lizar, entre eles um do­cu­men­tário sobre as mu­lheres so­vié­ticas no qual tinha co­me­çado a tra­ba­lhar em 1933. Se­gundo ela, seria um filme que mos­traria o papel de­ci­sivo da re­vo­lução pro­le­tária na his­tória da eman­ci­pação das mu­lheres.

Ci­nema como es­crita da his­tória

Tal como os seus co­legas, Shub con­si­de­rava a mon­tagem, a su­cessão das ima­gens e a sua ar­ti­cu­lação, como o ele­mento nu­clear do ci­nema. Ab­sor­vendo as te­o­rias de ou­tros ci­ne­astas (como Lev Ku­le­chov, Vertov, e Ei­sens­tein) e re­flec­tindo sobre elas nos seus es­critos, Shub de­sen­volveu uma prá­tica ra­dical e cri­a­tiva de mon­tagem ci­ne­ma­to­grá­fica como com­po­sição da visão his­tó­rica e do efeito emo­ci­onal de um filme. Es­sen­ci­al­mente, ela queria dar a ver a di­a­léc­tica con­creta, hu­mana, da his­tória através de um pa­ci­ente tra­balho de mon­tagem. Po­demos vê-la como a pre­cur­sora do ci­nema cons­truído a partir de ima­gens de ar­quivo, no qual os re­gistos vi­suais do pas­sado são re­vi­si­tados e re­mon­tados — um ci­nema como es­crita da his­tória, como de­monstra a sua obra Is­pa­niia (Es­panha, 1939) sobre a Guerra Civil Es­pa­nhola e a luta contra o fas­cismo.

Pa­denie Di­nastii Ro­ma­no­vikh (A Queda da Di­nastia Ro­manov, 1927) é um desses filmes de com­pi­lação, um sub-gé­nero do ci­nema do­cu­mental so­vié­tico que Shub ajudou a criar e que su­cedeu à poé­tica do quo­ti­diano dos do­cu­men­tá­rios de Vertov. A pro­dução desta obra en­volveu a com­bi­nação de ima­gens de filmes de ac­tu­a­li­dades an­tigos, de fitas ama­doras, de re­gistos de ci­ne­ma­tó­grafos ofi­ciais da fa­mília im­pe­rial, além de ma­te­rial re­cu­pe­rado for­tui­ta­mente de adegas, co­fres, e ar­má­rios, no­me­a­da­mente de ope­ra­dores de câ­mara du­rante a Pri­meira Guerra Mun­dial. A ci­ne­asta ana­lisou cerca de 555 horas de ma­te­rial para pro­duzir 90 mi­nutos, en­ca­de­ando ima­gens para dar forma vi­sual à his­tória so­cial da Rússia entre 1913 e 1917. As ima­gens es­co­lhidas pedem atenção e evi­den­ciam o cui­dado com que Shub as se­lec­ci­onou e se­quen­ciou. Há um mo­mento em que po­demos ler num in­ter­tí­tulo: «As mãos dos tra­ba­lha­dores pre­pa­ravam a morte para os seus ir­mãos.» Na imagem que se segue, o ope­rário que fecha mu­ni­ções, tra­zendo-as para junto de si num mo­vi­mento me­câ­nico e ir­re­flec­tido, faz uma pe­quena pausa quando vai buscar a úl­tima peça. O tra­ba­lhador lança o seu olhar sobre o que tem entre os dedos, assim ma­ni­fes­tando a sua cons­ci­ência sobre o que está a fazer, mesmo que apenas por um ins­tante. É por exem­plos como este que a obra re­fle­xiva de Shub con­tri­buiu de modo sin­gular para a van­guarda ci­ne­ma­to­grá­fica so­vié­tica. Os re­gistos do pas­sado per­mi­tiram-lhe es­cavar e des­vendar frag­mentos de outra his­tória a partir de um pre­sente em re­vo­lução. Como ela es­creveu, tudo se de­cidia na prá­tica: «É es­pan­toso quantas so­lu­ções ines­pe­radas surgem quando se­gu­ramos pe­lí­cula nas mãos. Tal como as le­tras: nascem no topo da ca­neta.»




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