Uma espécie de sigilo

Correia da Fonseca

A te­le­visão por­tu­guesa, di­vi­dida nas suas di­fe­rentes em­presas ope­ra­doras como pes­soas dis­tintas de uma só re­a­li­dade ver­da­deira (o que talvez nos re­corde qual­quer outra coisa), tem para con­nosco cui­dados que por vezes pa­recem ver­da­dei­ra­mente ma­ter­nais: não só nos educa, é claro que se­gundo cri­té­rios seus, como per­ma­nen­te­mente está alerta para que nada nos desvie do bom ca­minho e ne­nhuns even­tuais maus exem­plos nos ve­nham per­turbar. Um caso con­creto deste des­velo acon­teceu re­cen­te­mente e não de­certo por força da pro­xi­mi­dade do Natal. É que há poucas se­manas se re­a­li­zaram na Ve­ne­zuela, esse país ter­ri­vel­mente mal com­por­tado que se atreveu a na­ci­o­na­lizar o seu pró­prio pe­tróleo, elei­ções au­tár­quicas para dis­puta do poder local em 335 mu­ni­cí­pios e 23 ca­pi­tais re­gi­o­nais. Pa­recia, na­tu­ral­mente, que os ve­ne­zu­e­lanos se atre­ve­riam a con­testar a dura re­pressão que os media de­mo­crá­ticos não se cansam de de­nun­ciar e, para tanto, acor­re­riam aos lu­gares de voto para der­rotar os can­di­datos apoi­antes do go­verno Ma­duro. Também desta vez terá ha­vido ob­ser­va­dores do acto elei­toral, sem o que te­riam ocor­rido de­nún­cias pú­blicas e ve­e­mentes. Feitas as contas, porém, os re­sul­tados foram de­sa­ni­ma­dores: os apoi­antes de Ma­duro ven­ceram em 300 dos 335 mu­ni­cí­pios e em 19 das 23 ca­pi­tais de dis­trito! Se­jamos sin­ceros: com tão fra­go­rosas der­rotas nem dará gosto ser de­mo­crá­tico nem é ren­tável o ge­ne­roso e per­ma­nente apoio dos Es­tados Unidos da Amé­rica.

Cum­prir a norma

Fe­liz­mente, a te­le­visão por­tu­guesa vela por todos nós e não gosta de nos afligir com no­tí­cias tristes: quanto a amar­guras, bem basta o cons­tante re­gresso aos lu­gares quei­mados no nosso País desde 17 de Junho a 15 de Ou­tubro, re­gresso que não apenas tem o sinal de so­li­da­ri­e­dade para com as ví­timas da des­graça como a van­tagem de nele sempre poder ser in­cluída uma seta en­ve­ne­nada di­ri­gida aos res­pon­sá­veis su­postos ou não. Assim, de­certo para não nos en­tris­tecer com no­tí­cias amargas, a in­for­mação acerca dos re­fe­ridos re­sul­tados elei­to­rais na Ve­ne­zuela foi re­du­zida a um mí­nimo tempo de an­tena quando não de todo es­que­cida. Re­pare-se que nem se­quer houve o tra­balho de no­ti­ciar os re­sul­tados ha­vidos, assim se neu­tra­li­zando an­te­ci­pa­da­mente uma even­tual acu­sação de eli­mi­nação por puros mé­todos cen­só­rios, para logo de se­guida se pul­ve­rizar a in­for­mação com sus­peitas de vi­ci­ação que mesmo sem qual­quer prova te­riam algum efeito: para se­men­teiras desse gé­nero é que o ter­reno, que neste caso são as ca­beças dos te­les­pec­ta­dores, está sempre bem pre­pa­rado. Mas a opção es­co­lhida foi a de en­volver esses re­sul­tados elei­to­rais numa es­pécie de si­gilo. Como em tempos dizia um es­tri­bilho pu­bli­ci­tário, é fácil, é ba­rato e dá mi­lhões. Neste caso os mi­lhões são du­vi­dosos, não sendo plau­sível, bem pelo con­trário, que te­nham um di­recto ca­rácter fi­nan­ceiro. Mas em ver­dade con­tinua em vigor o dever, agora já não ex­presso em letra de forma, de «ac­tivo re­púdio do co­mu­nismo e de todas as ideias sub­ver­sivas». Cum­prir a norma pode con­ti­nuar a ser obri­ga­tório, a obe­di­ência tem muitos ca­mi­nhos e os di­versos po­deres es­tarão atentos.




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