O pretexto e o vírus

Correia da Fonseca

Foi por volta do Natal, o que aliás foi ge­ne­ra­li­za­da­mente con­si­de­rado como cir­cuns­tância agra­vante ainda que por ra­zões alheias à re­li­gi­o­si­dade que foram apro­vadas as al­te­ra­ções à da Lei de Fi­nan­ci­a­mento dos Par­tidos Po­lí­ticos. A ini­ci­a­tiva dos de­pu­tados teve ime­di­atas con­sequên­cias que muito se pa­re­ceram com alarme so­cial, bem se po­dendo dizer que num certo sen­tido in­cen­diou o País e que as chamas da in­dig­nação se pro­pa­garam por todo o lado com o pres­ti­moso sopro que lhe foi dado pela co­mu­ni­cação so­cial em geral e pela te­le­visão em es­pe­cial. Não sur­pre­ende: no nosso País está desde há muito ge­ne­ra­li­zada a aversão ao de­pu­tado quase sempre in­te­grada na mais geral aversão a «os po­lí­ticos» que faz parte da he­rança ide­o­ló­gica dei­xada pelo fas­cismo sem que nin­guém tenha to­mado em mãos a ta­refa cí­vica e hi­gié­nica de a des­montar e des­mentir. É sa­bido que o doutor Sa­lazar odiava «os po­lí­ticos», gente an­ti­pa­trió­tica ge­ral­mente paga por Mos­covo que ali­men­tava con­de­ná­veis so­nhos de li­ber­dade e de­mo­cracia, e por isso or­de­nava ao seu apa­relho pro­pa­gan­dís­tico que os bom­bar­de­asse com de­trac­ções e ca­lú­nias. Me­ta­mor­fo­seada em vírus de ac­ti­vi­dade per­ma­nente, essa es­tra­tégia foi her­dada por boa parte dos media pos­te­ri­ores a Abril que lhe dão bom uso quando a si­tu­ação é pro­pícia e até quando não o é. Este caso da al­te­ração à Lei do Fi­nan­ci­a­mento dos Par­tidos foi para eles um pre­sente dos deuses de­certo mo­vidos pelo es­pí­rito do di­tador de Santa Comba.

Em­bos­cado

É pos­sível e até pro­vável que as re­per­cus­sões deste epi­sódio sejam li­mi­tadas e se dis­sipem ra­pi­da­mente, dele so­brando para o sen­ti­mento co­lec­tivo um agra­va­mento da imagem dos de­pu­tados na ava­li­ação da cha­mada opi­nião pú­blica. Neste as­pecto cabe dizer, na­tu­ral­mente que com a de­vida vénia e todo o res­peito, que os se­nhores de­pu­tados há muito que de­ve­riam ter adop­tado es­tra­té­gias de au­to­de­fesa da sua re­pu­tação e de des­men­tido de ca­lú­nias ex­plí­citas ou im­plí­citas que contra eles sejam dis­pa­rados. É que não se trata apenas deles mas também e so­bre­tudo da de­mo­cracia. Talvez me­reça ser re­cor­dado que uma boa parte dos golpes de di­reita que re­gu­lar­mente vão acon­te­cendo por esse mundo fora se «le­gi­tima» in­vo­cando o com­bate à «cor­rupção». Dir-se-á que o nosso País está ao abrigo de algum risco desse gé­nero, mas nem assim é sau­dável que a re­pu­tação pú­blica de «os po­lí­ticos» seja aban­do­nada às ma­no­bras dos que são ca­lu­ni­a­dores por uma vo­cação re­for­çada por en­co­mendas de raiz fas­ci­zante. E aqui che­gamos talvez ao âmago da questão: é de fas­cismo que se trata ou, no mí­nimo, de um ca­minho para ele que, nunca o es­que­çamos, já não usa fardas nem braços es­ten­didos mas sub­siste no afecto e até já nos com­por­ta­mentos de muita gente, e que agora ser­viram para a dis­se­mi­nação e re­forço do vírus que está sempre por aí, em­bos­cado. E uti­li­zável.

 



Mais artigos de: Argumentos

Cultura e alienação

Nas últimas décadas, o desinvestimento na cultura enquanto serviço público atira-a para a fogueira unidimensional do mercado. A cultura, que deveria assegurar o direito de todos ao acesso, à criação e à fruição cultural e...

Bonecos de luz

Há uns anos largos dei de caras com um combate de boxe forçosamente importante, dado que a televisão o transmitiu. No zapping possível e rápido num tempo de poucos canais apanhei a estação, ouvi uma voz conhecida minha e estive naquela de quem...