José Vitoriano, destacado comunista e extraordinário ser humano

Gustavo Carneiro

CENTENÁRIO No pas­sado sá­bado, 30, faria cem anos aquele de quem Álvaro Cu­nhal disse um dia que se de­se­jasse ser pa­re­cido com al­guém seria com ele: José Vi­to­riano, des­ta­cado mi­li­tante e di­ri­gente co­mu­nista, com uma in­tensa in­ter­venção na clan­des­ti­ni­dade, na Re­vo­lução e de então até ao seu fa­le­ci­mento, em 2006.

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Oi­tenta e oito anos de vida, mais de sete dé­cadas de ac­ti­vi­dade sin­dical e par­ti­dária, 17 anos pas­sados nas pri­sões fas­cistas (13 dos quais se­guidos). Estes são al­guns nú­meros im­pres­si­o­nantes que por si só re­ve­la­riam a fir­meza e te­na­ci­dade do co­mu­nista nas­cido em Silves se­manas após ter saído vi­to­riosa, na lon­gínqua Rússia, a pri­meira re­vo­lução so­ci­a­lista da His­tória, cujo exemplo e al­cance mar­ca­riam toda a vida de José Vi­to­riano.

Mas há ou­tros factos que tes­te­mu­nham um per­curso co­e­rente e mul­ti­fa­ce­tado: o início da vida de ope­rário, aos 13 anos, numa fá­brica de cor­tiça; a pri­meira greve, aos 15; a eleição para a pre­si­dência do Sin­di­cato Na­ci­onal dos Cor­ti­ceiros do Dis­trito de Faro em 1945; a mi­li­tância co­mu­nista de dé­cadas, as­su­mindo as mais di­versas ta­refas e res­pon­sa­bi­li­dades na or­ga­ni­zação; a en­trada no quadro de fun­ci­o­ná­rios do Par­tido; qua­li­dade de membro do Co­mité Cen­tral do Par­tido (no qual per­ma­neceu de 1967 a 2000) e dos seus or­ga­nismos exe­cu­tivos; a ac­ti­vi­dade como de­pu­tado, as­su­mida du­rante 10 anos, oito dos quais en­quanto vice-pre­si­dente da As­sem­bleia da Re­pú­blica; as ta­refas in­ter­na­ci­o­nais de­sem­pe­nhadas.

Dizer isto, porém, é dizer muito pouco, pois por de­trás de cada um destes factos, de cada um destes nú­meros, de cada uma destas datas, estão inú­meras his­tó­rias que raras vezes con­tava na pri­meira pessoa. José Vi­to­riano soube desde cedo in­serir-se na sua classe, no seu Par­tido e no sin­di­cato, dando o me­lhor das suas imensas ca­pa­ci­dades e in­fi­nita ge­ne­ro­si­dade à causa da li­ber­tação e eman­ci­pação dos tra­ba­lha­dores e do povo.

Estas ca­rac­te­rís­ticas foram re­al­çadas por Je­ró­nimo de Sousa na sessão pú­blica evo­ca­tiva do cen­te­nário do seu nas­ci­mento, re­a­li­zada no dia 12 de De­zembro na Casa do Alen­tejo: o Se­cre­tário-geral des­tacou a «no­breza de ca­rácter», as «firmes con­vic­ções» e a «enorme di­mensão hu­ma­nista» de José Vi­to­riano, cuja ri­queza, acres­centou, «não cabe em ne­nhuma bi­o­grafia». Cons­ci­entes disto, ar­ris­camos traçar al­guns dos mais mar­cantes mo­mentos desta vida ex­tra­or­di­nária.

Pri­meiros passos
na luta sin­dical e po­lí­tica

José Vi­to­riano nasceu no lugar de Torre e Cercas, em Silves, numa fa­mília de cam­po­neses po­bres. Como muitos dos me­ninos desse tempo co­meçou a tra­ba­lhar cedo, no caso aos 13 anos, numa fá­brica de cor­tiça. A cons­ci­ência de classe que ra­pi­da­mente de­sen­volveu leva-o a par­ti­cipar, logo em 1932, na sua pri­meira greve, contra os des­contos para o fundo de de­sem­prego que o fas­cismo em con­so­li­dação pre­tendia então impor.

A jor­nada de 18 de Ja­neiro de 1934 em Silves, na qual par­ti­cipa, e a brutal re­pressão que se abateu sobre muitos dos seus com­pa­nheiros de tra­balho foi de­ter­mi­nante para o per­curso po­lí­tico de José Vi­to­riano. Dois anos de­pois, não sendo ainda mi­li­tante co­mu­nista, já co­la­bo­rava ac­ti­va­mente com o PCP e o So­corro Ver­melho In­ter­na­ci­onal.

A adesão formal ao Par­tido dá-se já em plena re­or­ga­ni­zação: em 1941, José Vi­to­riano passa a in­te­grar o Co­mité Local de Silves, o Co­mité Re­gi­onal do Bar­la­vento Al­garvio e o Co­mité Pro­vin­cial, no qual as­sume a res­pon­sa­bi­li­dade pelo tra­balho sin­dical. Em breve par­ti­cipa também no Co­mité Na­ci­onal Cor­ti­ceiro e na Co­missão Na­ci­onal Sin­dical do PCP.

As po­de­rosas lutas de massas tra­vadas desde o início da dé­cada e a vi­ragem da Se­gunda Guerra Mun­dial a favor da União So­vié­tica e ali­ados obrigam a di­ta­dura a re­cuos, sendo um deles a con­vo­cação de elei­ções nos sin­di­catos na­ci­o­nais. Como ou­tros ca­ma­radas em di­versos sin­di­catos de va­ri­ados sec­tores e re­giões, José Vi­to­riano é eleito pre­si­dente do Sin­di­cato Na­ci­onal dos Ope­rá­rios Cor­ti­ceiros do Dis­trito de Faro. À frente do sin­di­cato, de­sen­volve um in­tenso tra­balho em prol dos seus con­ter­râ­neos com­pa­nheiros de pro­fissão, que vi­viam então em dra­má­ticas con­di­ções de sub­sis­tência de­vido à brutal ex­plo­ração dos in­dus­triais.

José Vi­to­riano per­ma­neceu na pre­si­dência do sin­di­cato até à sua pri­meira prisão, em 1948, mas antes teve opor­tu­ni­dade de estar entre os de­le­gados ao IV Con­gresso do PCP, re­a­li­zado na Lousã em 1946 e que foi um mo­mento de­ci­sivo na vida par­ti­dária: aí foi con­sa­grada a via do le­van­ta­mento na­ci­onal para o der­ru­ba­mento da di­ta­dura e re­al­çado o ca­rácter es­tra­té­gico da luta de massas tendo em vista a cons­trução de am­plas ali­anças so­ciais e po­lí­ticas para a uni­dade an­ti­fas­cista.

Prisão e clan­des­ti­ni­dade

«A arma mais forte que o mi­li­tante tem, ao cair na prisão, é a sua con­fi­ança na luta, con­fi­ança no Par­tido, con­fi­ança no triunfo da causa que serve.» Estas de­cla­ra­ções de José Vi­to­riano à Rádio Por­tugal Livre após ter sido li­ber­tado da se­gunda prisão, em 1966, re­sume na per­feição aquela que foi a sua ati­tude de sempre pe­rante os car­ce­reiros. Logo em 1948, aquando da pri­meira prisão, re­sistiu à tor­tura da «es­tátua» ati­rando-se para o chão. A ou­sadia valeu-lhe cas­tigos vá­rios, mas os in­ter­ro­ga­tó­rios ter­mi­naram.

De­pois de li­ber­tado, em 1951, José Vi­to­riano passa aos qua­dros de fun­ci­o­ná­rios do Par­tido, as­su­mindo pri­meiro ta­refas em Se­túbal e de­pois a res­pon­sa­bi­li­dade pela or­ga­ni­zação da re­gião do Oeste e Alto Ri­ba­tejo e da zona entre a Venda Nova e Sintra, in­cluindo a So­re­fame. Dois anos de­pois, volta a ser preso, pas­sando pelas ca­deias do Al­jube, Ca­xias e Pe­niche, entre ou­tras. Na prisão par­ti­cipa em vá­rias lutas, in­cluindo greves de fome, pela me­lhoria das con­di­ções pri­si­o­nais, o que lhe custa di­versos cas­tigos e pro­cessos. As raras vi­sitas que re­cebia, de­vido à dis­tância entre a prisão e a sua Silves natal, tor­naram ainda mais duro o ca­ti­veiro.

A sua li­ber­tação, após cum­prir uma pena su­pe­rior àquela a que tinha sido con­de­nado, deveu-se a uma in­tensa cam­panha de so­li­da­ri­e­dade que ex­tra­vasou fron­teiras. Re­gres­sado de ime­diato à luta, José Vi­to­riano é co­op­tado para o Co­mité Cen­tral em 1967, pas­sando pouco de­pois a in­te­grar o Se­cre­ta­riado, que por ra­zões de se­gu­rança fun­ci­o­nava no ex­te­rior do País. Nestes anos par­ti­cipa em di­versas ini­ci­a­tivas in­ter­na­ci­o­nais onde de­nuncia o terror fas­cista que se vivia em Por­tugal.

Em 1973 re­gressa ao tra­balho no in­te­rior do País e passa a in­te­grar a Co­missão Exe­cu­tiva, jun­ta­mente com Oc­távio Pato, Jo­a­quim Gomes e Fer­nando Blanqui Tei­xeira. E é quando de­corre uma reu­nião da Co­missão Exe­cu­tiva na casa onde mo­rava no Porto que se dá o le­van­ta­mento mi­litar de 25 de Abril de 1974.

Uma nova vida
com a de­di­cação de sempre

A Re­vo­lução e a de­mo­cracia al­teram pro­fun­da­mente o quo­ti­diano de José Vi­to­riano, mas não a de­di­cação ao Par­tido. Entre 1974 e 1988 é membro da Co­missão Po­lí­tica, com res­pon­sa­bi­li­dades pelas or­ga­ni­za­ções re­gi­o­nais de Se­túbal, Alen­tejo e Al­garve e ainda da Co­missão de Pesca e no sector sin­dical. No VII Con­gresso (Ex­tra­or­di­nário) do PCP, re­a­li­zado poucos meses após o 25 de Abril, in­tervém pre­ci­sa­mente sobre «os sin­di­catos e os tra­ba­lha­dores».

A partir de 1988 e até 1992 in­tegra a Co­missão Cen­tral de Con­trolo e Qua­dros e daí até 2000 a Co­missão Cen­tral de Con­trolo. Em quatro con­gressos, VIII, XIV, XV e XVI, in­tervém sobre a po­lí­tica de qua­dros, que con­si­de­rava um ele­mento es­sen­cial de toda a ac­ti­vi­dade par­ti­dária. A ac­ti­vi­dade re­vo­lu­ci­o­nária legal de José Vi­to­riano fez-se ainda na As­sem­bleia da Re­pú­blica e em inú­meras re­pre­sen­ta­ções in­ter­na­ci­o­nais.

Tal como na dura luta an­ti­fas­cista, também nos exal­tantes anos da Re­vo­lução e na tenaz re­sis­tência à po­lí­tica de di­reita, o PCP, os tra­ba­lha­dores e o povo por­tu­guês ti­veram em José Vi­to­riano um de­di­cado, des­ta­cado e ge­ne­roso com­ba­tente. O seu exemplo e per­curso per­so­ni­ficam o que de mais nobre tem a po­lí­tica: «a von­tade de­sin­te­res­sada de servir o seu povo e o seu País», como se pôde ler no voto de pesar apro­vado por una­ni­mi­dade na As­sem­bleia da Re­pú­blica em 2006 aquando do seu fa­le­ci­mento. 

Ci­ta­ções

«Hoje como ontem, como sempre, a uni­dade dos tra­ba­lha­dores é con­dição in­dis­pen­sável para o êxito na sua luta pela de­fesa das li­ber­dades.»

In­ter­venção no VII Con­gresso (Ex­tra­or­di­nário) do PCP, 1974

«Para as ge­ra­ções fu­turas o le­van­ta­mento mi­litar de Abril será uma lição de pa­tri­o­tismo, um exemplo do amor à li­ber­dade, a ga­rantia de que os ideais do pro­gresso sa­berão sempre en­con­trar forças e ho­mens ca­pazes de os levar à prá­tica.»

In­ter­venção na As­sem­bleia da Re­pú­blica, 1978

«A de­mo­cracia é obra dos de­mo­cratas. Ela é uma sua con­quista, tem de ser ob­jecto cons­tante da sua de­fesa. Há quem diga que só se co­nhece bem o valor da li­ber­dade de­pois de a termos per­dido.»

In­ter­venção na As­sem­bleia da Re­pú­blica, 1979

«Os pro­blemas de qua­dros são pro­blemas que os ho­mens e mu­lheres do nosso Par­tido vivem e en­frentam no dia-a-dia da ac­ti­vi­dade par­ti­dária e da sua vida pes­soal e fa­mi­liar. (…) O Par­tido deve estar atento e in­tervir sempre que ne­ces­sário para os re­solver ou ajudar a re­solver, pois os pro­blemas, quando existem, ou se re­solvem ou per­ma­necem e podem tender a agravar-se.»

In­ter­venção no XIV Con­gresso do PCP, 1992

«Mas a in­ter­venção dos sin­di­catos na­ci­o­nais du­rante o re­gime fas­cista na de­fesa dos in­te­resses dos tra­ba­lha­dores era pos­sível e fazia-se em muitos ou­tros casos, que não apenas na luta por me­lhores sa­lá­rios ou novos con­tratos co­lec­tivos de tra­balho.»

Ar­tigo na Vér­tice, 1995

«Os qua­dros formam-se so­bre­tudo no tra­balho, na or­ga­ni­zação e con­dução das lutas, na re­a­li­zação das ta­refas par­ti­dá­rias, na sua ac­ti­vi­dade do dia-a-dia.»

In­ter­venção no XV Con­gresso do PCP, 1996

«[Na prisão] Não vi­víamos de costas vol­tadas uns para os ou­tros. Pro­cu­rá­vamos ter um bo­cado de man­teiga, de mar­me­lada e de leite e assim tor­ná­vamos o pe­queno-al­moço mais subs­tan­cial.»

En­tre­vista ao Avante!, 2004

«As or­ga­ni­za­ções [do Par­tido na clan­des­ti­ni­dade] ti­nham con­tacto com os tra­ba­lha­dores e pro­mo­viam lutas, através da cri­ação de co­mis­sões de uni­dade nas em­presas, que ti­veram um papel re­le­vante na con­dução de muitas dessas lutas.»