As festas do Solstício de Inverno

Manuel Pires da Rocha

Era óbvio sinal da mais com­pleta sub­versão da ordem es­ta­be­le­cida

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As festas do Sols­tício de In­verno vêm de tempos já sem lem­brança em que os hu­manos cri­aram os deuses e lhes deram o en­cargo de or­denar ca­pri­chos de céu e terra, e ins­ta­laram-se no ca­len­dário do Nor­deste por­tu­guês para tem­perar os hu­mores da Na­tu­reza, quando da causa dos fe­nó­menos não se en­tendia mais do que a von­tade di­vina. Com­pre­ende-se o susto – o temor da bar­riga vazia e da con­se­quente fra­queza do corpo sempre foi o maior dos medos da­queles que con­tavam apenas com os seus braços para, em ali­ança com o sol e com a chuva, fazer me­drar a se­mente de que se faz todo o pão.

As Festas nunca fi­zeram parte do ma­nual de boas prá­ticas fol­cló­ricas que Sa­lazar en­co­mendou ao SNI. A ce­le­bração vivia do in­tenso e in­te­res­sado en­vol­vi­mento po­pular, não re­queria a adesão das au­to­ri­dades re­li­gi­osas, civis e mi­li­tares, pro­cla­mava no­tí­cias de in­te­resse geral sob a forma de «loas» de verbo solto e ina­ces­sível ao «exame prévio». Por outro lado, a ideia de con­cluir as festas numa ceia co­mu­ni­tária, em que todos co­miam, em função do res­pec­tivo ape­tite, aquilo que tinha sido rou­bado1 (por mo­tivos a se­guir ex­pli­cados) no fu­meiro das casas todas da al­deia, era óbvio sinal da mais com­pleta sub­versão da ordem es­ta­be­le­cida. E com efeito assim era, sendo de re­ferir que as Festas terão co­me­çado por estar as­so­ci­adas a ritos ini­ciá­ticos, o mo­mento de pas­sagem dos jo­vens à idade adulta, palco, por­tanto, dos actos de in­su­bor­di­nação que mar­cavam a che­gada de um tempo novo. Re­giste-se, a este pro­pó­sito, a cu­ri­o­si­dade – o evento, mais pro­pri­a­mente – de se estar a as­sistir ao cru­za­mento do «tempo novo» da idade dos hu­manos com o «novo tempo» da rei­vin­di­cação das ra­pa­rigas de pro­ta­go­nismo numa festa que até há bem pouco tempo le­vava a de­no­mi­nação de «festa dos ra­pazes». Este fe­nó­meno, comum às ro­ma­rias da Se­mana Santa de São Mi­guel e ou­tras ce­le­bra­ções po­pu­lares na­ci­o­nais, traduz si­nais en­tu­si­as­mantes da vi­ta­li­dade das tra­di­ções «ne­ces­sá­rias», con­tras­tantes com si­tu­a­ções de cris­ta­li­zação ce­le­bra­tiva, por­ven­tura mais sen­sí­veis às con­ve­ni­ên­cias das pro­gra­ma­ções tu­rís­ticas que lhes hão de ser fa­tais.

Acima se falou de roubo e agora se ex­pli­cará a razão de tal des­mando, por­ven­tura re­versão sim­bó­lica do tempo em que al­guns hu­manos to­maram de as­salto o que era de todos e o fi­zeram só seu. Fa­lamos das coisas (ob­jectos e ter­ri­tó­rios) mas po­de­ríamos falar das pes­soas, razão que jus­ti­fica tantas lutas há tanto tempo. Er­nesto Veiga de Oli­veira ex­plica o roubo ri­tual como acto que se «ar­ti­cula num acon­te­ci­mento que a todos in­te­ressa e de que todos par­ti­cipam, e ex­prime por isso talvez a im­per­so­na­li­dade do ob­jecto sobre que in­cide, que, na al­tura da sua uti­li­zação, não deve ser pro­pri­e­dade de nin­guém».

Gai­teiros, tam­bo­ri­leiros, a Velha e o Ca­rocho em dis­puta de ter­reiro (e de crença) com S. João Evan­ge­lista e as fes­ti­vi­dades do Natal, Pau­li­teiros her­dando ma­no­bras guer­reiras em tempos de paz, jo­vens Ca­retos su­bidos numa tri­buna de pau, em verso re­ve­lando vidas e cla­mando por Jus­tiça. O tempo novo ce­le­brando a vi­tória numa mesa co­mu­ni­tária, como quem re­sume em meia de dúzia de dias, no ter­ri­tório de uma al­deia trans­mon­tana, as con­tra­di­ções da His­tória e a sua so­lução. O des­fazer, afinal, de um no­velo de que tão bem se ocupou o fi­ló­sofo alemão de quem ce­le­bramos este ano o 200.º ani­ver­sário.

1 As peças de fu­meiro são «rou­badas» por uma fi­gura mas­ca­rada (o Ca­rocho, em Cons­tantim), per­so­nagem que per­petra o roubo ri­tual dos ali­mentos que serão ser­vidos na ceia co­mu­ni­tária.




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