A calúnia das alegadas «perdas de água» no abastecimento público

Luísa Tovar
GESTÃO DA ÁGUA Têm vindo a ser apre­go­adas per­cen­ta­gens muito altas de «perdas de água» em sis­temas de abas­te­ci­mento pú­blico. É uma acu­sação muito grave, mais ainda quando se fazem sentir in­ten­sa­mente os efeitos da seca. E muita gente acre­dita.
É pro­pa­ganda ide­o­ló­gica falsa, que im­porta des­montar e es­cla­recer.

Só por má fé e pro­pa­ganda ide­o­ló­gica apodam de perdas de água os ser­viços pú­blicos gra­tuitos

Usam muito abu­si­va­mente a de­sig­nação de «perdas de água» como si­nó­nimo de «água não fac­tu­rada». Chamam “perdas de água” à di­fe­rença entre o vo­lume de água cap­tada, (ou o vo­lume de água com­prado ao sis­tema mul­ti­mu­ni­cipal) e o vo­lume de água ven­dido ao uti­li­zador final. É um ba­lanço de caixa, um ba­lanço co­mer­cial, que nada tem a ver com o ba­lanço hi­dráu­lico nem com o be­ne­fício so­cial.

Acon­tece que as au­tar­quias usam água. E muita.

Mais ri­go­ro­sa­mente – os mu­ní­cipes e vi­si­tantes usam muita água que não lhes é co­brada.

  • Para for­ne­ci­mento à Câ­mara e aos ser­viços au­tár­quicos,

  • Para cha­fa­rizes e fon­ta­ná­rios pú­blicos,

  • Para bal­neá­rios pú­blicos, es­colas, cre­ches, pa­vi­lhões des­por­tivos, bi­bli­o­tecas da au­tar­quia,

  • Para la­vagem de ruas, lim­peza de edi­fí­cios pú­blicos,

  • Para ma­nu­tenção de jar­dins e es­paços pú­blicos,

  • Para ins­ta­la­ções sa­ni­tá­rias pú­blicas,

  • Para apoios a eventos e feiras mu­ni­ci­pais,

  • Para as bocas de in­cêndio,

  • Para uma enorme quan­ti­dade de ser­viços gra­tuitos que são dis­po­ni­bi­li­zados aos mu­ní­cipes e que, na­tu­ral­mente, pre­cisam de água e sa­ne­a­mento.

As câ­maras não co­bram a água a si pró­prias – umas medem, ou­tras não, o que não afecta os ser­viços pres­tados –, mas na­tu­ral­mente não co­bram a si pró­prias, não tem qual­quer sen­tido emitir fac­turas, porque essa água não é co­brada. Note-se que a ins­ta­lação e ma­nu­tenção dos con­ta­dores, bem como as ro­tinas de lei­tura, re­gisto e pro­ces­sa­mento dos dados im­plicam des­pesas e en­cargos ad­mi­nis­tra­tivos ao erário mu­ni­cipal «al­ter­na­tivos» a ou­tras pres­ta­ções aos mu­ní­cipes. As câ­maras e SMAS são en­ti­dades de di­reito pú­blico, têm por ob­jec­tivo o ser­viço e a sua con­ta­bi­li­dade é com­ple­ta­mente di­fe­rente da das en­ti­dades de di­reito pri­vado.

Os con­ces­si­o­ná­rios dos ser­viços pri­va­ti­zados não for­necem nada gra­tui­ta­mente – co­bram cada gota – então, as au­tar­quias pagam o uso pró­prio e todos os ser­viços gra­tuitos ou esses são eli­mi­nados logo que o con­ces­si­o­nário ins­tala o ne­gócio, como já acon­teceu, por exemplo, com os fon­ta­ná­rios em Ton­dela. Este tem sido mais um dos as­pectos das pri­va­ti­za­ções rui­nosos para as au­tar­quias.

Só com as co­branças às au­tar­quias, as pri­va­ti­za­ções por con­cessão ori­ginam muito mais fac­tu­ração, na­tu­ral­mente. Fac­tu­ração ao ser­viço pú­blico e ao ser­viço gra­tuito!

Assim, todas as pri­va­ti­za­ções for­mais – pas­sagem do di­reito pú­blico ao di­reito pri­vado – se tra­duzem em muito mais fac­tu­ração.

É o «usado e não fac­tu­rado» que cons­titui a mais grossa fatia da­quilo que nos apre­goam como «perdas de água».

As «perdas reais»

Apre­senta-se no Quadro 1 a ter­mi­no­logia usada pela IWA (As­so­ci­ação In­ter­na­ci­onal da Água), muito ge­ne­ra­li­za­da­mente ci­tada em do­cu­mentos téc­nicos sobre «perdas de água»

Su­blinha-se que só as perdas reais têm sig­ni­fi­cado fí­sico, de «água que não cum­priu o seu des­tino» e voltou à Na­tu­reza sem abas­tecer nin­guém. 

As perdas reais são cal­cu­ladas sub­traindo ao vo­lume en­trado no sis­tema o con­sumo au­to­ri­zado e as perdas apa­rentes.

Mas só as par­celas me­didas dos con­sumos au­to­ri­zados são co­nhe­cidas e as perdas apa­rentes são pro­blemas ju­rí­dico-ad­mi­nis­tra­tivos, que só existem en­quanto «des­co­nhe­cidos», porque, logo que de­tec­tados, são eli­mi­nados.

Os con­sumos au­to­ri­zados não me­didos são lí­citos e fazem parte do ob­jec­tivo so­cial do sis­tema.

In­cluem fre­quen­te­mente todas as pres­ta­ções gra­tuitas já re­fe­ridas atrás.

Somam-se ainda casos de utentes com abas­te­ci­mento de água gra­tuito e sem con­tador, por opção da au­tar­quia e por ra­zões muito di­versas, entre as quais so­bressai a ga­rantia do di­reito uni­versal à água em zonas com in­vi­a­bi­li­dade téc­nico-eco­nó­mica de ins­talar con­ta­dores e/​ou de as­se­gurar as lei­turas – por exemplo, nal­gumas Áreas Ur­banas de Gé­nese Ilegal (AUGI) e nou­tros casos em que as ca­rac­te­rís­ticas de dis­persão po­pu­la­ci­onal, de rede ou de origem de água não per­mitem o for­ne­ci­mento com a pressão re­gu­la­mentar ou o cum­pri­mento inin­ter­rupto de todos os pa­râ­me­tros le­gais – então, al­gumas câ­maras optam por for­necer gra­tui­ta­mente o «pos­sível».

Assim, uma per­cen­tagem muito ele­vada da uti­li­zação so­cial e fun­da­mental da água está fre­quen­te­mente «oculta» nos con­sumos lí­citos não fac­tu­rados...

Só seria pos­sível fazer uma ava­li­ação das perdas reais se não hou­vesse «con­sumos não me­didos» o que exi­giria um sis­tema muito com­pleto e so­fis­ti­cado de me­di­ções con­tí­nuas ao longo de toda a rede de dis­tri­buição e ra­mais, uma ba­teria enorme de con­ta­dores e a ad­mi­nis­tração e lei­tura sis­te­má­tica de tudo isso. Na ver­dade, em ne­nhum sis­tema por­tu­guês é feita essa mo­ni­to­ri­zação com­pleta e, por isso, as ale­gadas «perdas» não são co­nhe­cidas.

Má fé e pro­pa­ganda

No XXI Con­gresso da Ordem dos En­ge­nheiros, que de­correu em Coimbra em 23 e 24 de No­vembro de 2017, o eng. José Sar­dinha, pre­si­dente da EPAL, fez uma co­mu­ni­cação in­ti­tu­lada «Wone: Um Sis­tema In­te­li­gente na Gestão e Con­trolo de Perdas de águas nas Ci­dades» sobre o mo­der­nís­simo sis­tema de me­dição e con­trolo ins­ta­lado na EPAL para iden­ti­fi­cação, mo­ni­to­ri­zação e re­dução das «perdas de água». Nessa co­mu­ni­cação, di­ri­gida a pro­fis­si­o­nais de en­ge­nharia, não con­se­guiu for­necer quais­quer dados que des­cri­mi­nassem as vá­rias com­po­nentes da ter­mi­no­logia ofi­cial de cál­culo das perdas reais. De facto, sempre re­feriu as «Perdas de água» como a di­fe­rença entre os vo­lumes de água saídos das Es­ta­ções de Tra­ta­mento e a «Água Fac­tu­rada» – in­cluindo nas «perdas» todos os con­sumos au­to­ri­zados e não fac­tu­rados, mas ex­cluindo as perdas entre a cap­tação e a saída da ETA. Neste côm­puto, e não iden­ti­fi­cado ex­pli­ci­ta­mente, a «re­dução de perdas» abrangia os cortes de abas­te­ci­mento de água a uti­li­za­dores do­més­ticos. Re­fe­rindo de­ter­mi­nada au­tar­quia (não no­meada) exem­pli­ficou como «es­cân­dalo» de «perdas de água» o abas­te­ci­mento gra­tuito não fac­tu­rado a nu­me­rosos utentes do­més­ticos (re­lembro o di­reito uni­versal à água).

Fi­cámos assim ci­entes que a pró­pria EPAL, que tem o mais so­fis­ti­cado e avan­çado sis­tema de mo­ni­to­ri­zação, pro­ces­sa­mento e con­trolo do cir­cuito hi­dráu­lico da água exis­tente em Por­tugal, não sabe as perdas reais e aplica o termo «perdas de água» a toda a «água tra­tada e não fac­tu­rada». O que são coisas to­tal­mente di­fe­rentes.

Se não são co­nhe­cidas as perdas reais nesse sis­tema, não são pos­sí­veis de co­nhecer em ne­nhum outro.

Só por má fé são alar­de­ados va­lores de perdas de água atri­buídas a tal ou tal au­tar­quia. Só por má fé e pro­pa­ganda ide­o­ló­gica apodam de perdas de água os ser­viços pú­blicos gra­tuitos, dando-lhes a co­no­tação de des­per­dício.

Ine­vi­ta­bi­li­dade das perdas reais de água

É fi­si­ca­mente im­pos­sível eli­minar perdas reais sig­ni­fi­ca­tivas num sis­tema de abas­te­ci­mento pú­blico.

Por im­po­sição re­gu­la­mentar e sa­ni­tária, a água de abas­te­ci­mento tem de cir­cular nas tu­ba­gens em alta pressão; isto obriga a que ha­vendo mi­cro­fis­suras nos canos, ou em caso de ro­turas, a água tra­tada saia em pressão im­pe­dindo a con­ta­mi­nação por afluência de águas po­luídas. No es­goto é o in­verso, cir­cula a baixa pressão para que em caso de con­tacto com o meio a água ex­te­rior entre no tubo e não haja der­rames.

Por pro­jecto, a rede de abas­te­ci­mento de água «perde água» e a rede de es­gotos «mete água».

Quanto mais ex­tensão de cano, mais perdas de carga há e maior é a pressão ne­ces­sária no início para manter o es­sen­cial na zona final. Mais pressão, mais fugas...

Não são com­pa­rá­veis as per­cen­ta­gens de perdas glo­bais em sis­temas di­fe­rentes – quando muito, é va­ga­mente com­pa­rável a perda média por qui­ló­metro de con­duta. A di­mensão da rede – qui­ló­me­tros de tubos – é a prin­cipal fonte de perdas, e também o maior e mais dis­pen­dioso obs­tá­culo à ma­nu­tenção, ao re­ju­ve­nes­ci­mento e ao con­trolo.

O con­celho de Lisboa, com uma enorme con­cen­tração de po­pu­lação, mai­o­ri­ta­ri­a­mente «em­pi­lhada» em pré­dios de vá­rios an­dares, tem uma rede muito mais curta do que Sintra ou Loures. 50% da área do País tem den­si­dades po­pu­la­ci­o­nais in­fe­ri­ores a 35 ha­bi­tantes por km2...

Mesmo que sou­bés­semos as perdas reais com­pa­rá­vamos o quê?

Dar às coisas as pro­por­ções de­vidas

O abas­te­ci­mento de água do­més­tico – in­cluindo as perdas todas – re­pre­senta uma pe­que­nís­sima per­cen­tagem do uso total da água.

O Plano Na­ci­onal da Água de 2001 es­tima as ne­ces­si­dades de água para abas­te­ci­mento pú­blico em 6,5% das ne­ces­si­dades to­tais de água, atri­buindo às ne­ces­si­dades de água para agri­cul­tura e pe­cuária 90% do total. Isto sem contar a pro­dução hi­dro­e­léc­trica, que é, de longe, o maior uti­li­zador e de­volve ao rio a água toda, mas em época de seca pode de­pau­perar muito as re­servas em al­bu­feiras.

Por outro lado, como mostra o Quadro 2, cal­culei a «minha» uti­li­zação in­di­vi­dual da água se­gundo o mé­todo da pe­gada de água (wa­ter­fo­ot­print.org) que in­clui uma es­ti­ma­tiva de perdas nos vá­rios pro­cessos. A parte da minha «pe­gada» em uso do­més­tico é 5% do total.

Estes cál­culos são ine­xactos, mas é bem real a di­mi­nuta pro­porção de dis­po­ni­bi­li­dades ne­ces­sária à sa­tis­fação uni­versal do di­reito à água. É nou­tros sec­tores e há­bitos de con­sumo que de­víamos pri­o­rizar a op­ti­mi­zação do uso da água. 

Só o ódio aos ser­viços pú­blicos aces­sí­veis e gra­tuitos mo­tiva a cam­panha sobre falsas «perdas de água».

Es­te­jamos alerta!

1 http://​wa­ter­fo­ot­print.org/​en/​re­sources/​in­te­rac­tive-tools/​per­sonal-water-fo­ot­print-cal­cu­lator/​per­sonal-cal­cu­lator-ex­tended/




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