Opel Portugal vs. Autoeuropa

João Silva

DE­SIN­FORMAÇÃO Desde que os tra­ba­lha­dores da Au­to­eu­ropa foram for­çados a re­correr a formas de luta, pe­rante a ir­re­du­ti­bi­li­dade da ad­mi­nis­tração na in­tenção de impor o tra­balho obri­ga­tório ao sá­bado e um sis­tema de turnos ro­ta­tivos – com graves im­pli­ca­ções na saúde e na vida pes­soal e fa­mi­liar dos tra­ba­lha­dores –, que foi posta em marcha pelos ór­gãos da co­mu­ni­cação so­cial do­mi­nante uma cam­panha de in­to­xi­cação da opi­nião pú­blica, vi­sando di­vidir e des­mo­bi­lizar os tra­ba­lha­dores, pro­cu­rando atingi-los na sua in­te­li­gência, dig­ni­dade e sen­tido de res­pon­sa­bi­li­dade.

A Opel não fe­chou por falta de acordo, mas por in­cum­pri­mento do acordo pela em­presa

Uma cam­panha ba­seada na fal­si­fi­cação dos factos, na pro­vo­cação e na men­tira, onde não fal­taram os ata­ques às or­ga­ni­za­ções re­pre­sen­ta­tivas dos tra­ba­lha­dores, de­sig­na­da­mente aos sin­di­catos, a ten­ta­tiva de par­ti­da­ri­zação da luta e toda a es­pécie de chan­ta­gens, in­cluindo o velho re­curso à ameaça de des­lo­ca­li­zação da pro­dução – de tal forma des­con­tex­tu­a­li­zado, que a pró­pria ad­mi­nis­tração teve ne­ces­si­dade de vir a pú­blico des­mentir.

Os pro­ta­go­nistas são os mesmos de sempre: co­men­ta­dores de turno ao ser­viço do ca­pital; os cha­mados ana­listas po­lí­ticos; di­ri­gentes pa­tro­nais; forças po­lí­ticas de di­reita; e até al­guns (poucos) porta-vozes das ad­mi­nis­tra­ções que, para o efeito, uti­lizam abu­si­va­mente o man­dato que con­se­guiram dos tra­ba­lha­dores. Na ten­ta­tiva de darem um ar de cre­di­bi­li­dade às ame­aças, esta gente não teve pejo em uti­lizar vezes sem conta o nome dos tra­ba­lha­dores da Opel Por­tugal, in­si­nu­ando que te­riam sido eles os cul­pados pelo en­cer­ra­mento da fá­brica.

Po­de­riam ter fa­lado de ou­tras fá­bricas des­lo­ca­li­zadas pelas mul­ti­na­ci­o­nais, como a Ford, a Qui­monda, a Lear, a Johnson Con­trol, a Texas Ins­tru­ments, a Delphi da Guarda e de Ponte de Sor, a Re­nault, a In­delma/​Alcoa, a Eu­ro­nadel, a Bom­bar­dier, ou ou­tras com di­fe­rentes tra­di­ções de luta e graus de or­ga­ni­zação. Mas não. Tinha de ser a Opel Por­tugal, onde os tra­ba­lha­dores tudo fi­zeram para que a pro­dução con­ti­nu­asse no nosso País.

Sa­bemos, e eles também sabem, que uma men­tira vá­rias vezes re­pe­tida acaba por pa­recer ver­dade. Por isso, tanto aqueles que tra­ba­lharam na Opel Por­tugal, que me­recem ser hon­rados pela luta que de­sen­vol­veram, como os tra­ba­lha­dores da Au­to­eu­ropa, que sa­berão en­con­trar, sem pres­sões e ame­aças, o me­lhor ca­minho para a de­fesa dos seus in­te­resse e di­reitos, me­recem que a ver­dade seja re­posta.

Se­jamos claros: é falsa e sem fun­da­mento a afir­mação de que a luta pelos di­reitos tenha sido a causa da des­lo­ca­li­zação da pro­dução. A Ge­neral Mo­tors (GM) trans­feriu a fá­brica para Sa­ra­goça, onde os sa­lá­rios eram muito mais ele­vados, para po­ten­ciar si­ner­gias e se apro­ximar dos cen­tros lo­gís­ticos da Ale­manha – na sua pró­pria jus­ti­fi­cação, que des­mente os co­men­ta­dores en­car­tados.

Ao longo da sua per­ma­nência em Por­tugal, du­rante mais de 43 anos, a fá­brica da GM foi palco de im­por­tantes lutas por me­lhores con­di­ções de vida e de tra­balho que nada im­pe­diram, antes im­pul­si­o­naram, o in­ves­ti­mento na me­lhoria do pro­cesso pro­du­tivo e a im­ple­men­tação de novos pro­jectos, de que é exemplo a am­pli­ação da fá­brica e a mo­der­ni­zação da linha, ambas no ano 2000.

O ca­derno rei­vin­di­ca­tivo apre­sen­tado para 2005 vinha na sequência da prá­tica de anos an­te­ri­ores e tinha em conta os acordos es­ta­be­le­cidos. Nele cons­tavam ma­té­rias re­la­ci­o­nadas com a ne­ces­si­dade de me­lhorar as con­di­ções de vida e de tra­balho, no­me­a­da­mente através da pro­posta de um au­mento igual para todos os tra­ba­lha­dores que cor­ri­gisse as dis­cre­pân­cias sa­la­riais re­sul­tantes de au­mentos se­lec­tivos ve­ri­fi­cados em anos an­te­ri­ores.

Acordo de 2005 vi­o­lado

Foi a in­tran­si­gência da Ad­mi­nis­tração, ao fazer de­pender o acordo da acei­tação in­te­gral de um sis­tema de fle­xi­bi­li­zação do ho­rário – com graves im­pli­ca­ções na vida dos tra­ba­lha­dores – que levou ao im­passe ne­go­cial e não deixou al­ter­na­tiva à adopção de formas de luta, as quais ti­veram o ponto alto na greve do dia 10 de Março de 2005.

Aos es­forços que se se­guiram, da parte da co­missão de tra­ba­lha­dores (CT), na pro­cura de uma so­lução ne­go­ciada, a ad­mi­nis­tração con­trapôs a dra­ma­ti­zação do pro­cesso, apre­sen­tando o acordo às suas pro­postas como con­dição e ga­rantia de pro­jectos fu­turos para a fá­brica. Foi neste con­texto de im­passe ne­go­cial e de pressão sobre o fu­turo do em­prego que, no dia 16 de Julho de 2005, teve lugar a con­sulta aos tra­ba­lha­dores, tendo 54% vo­tado pela acei­tação da pro­posta da em­presa.

Pe­rante este re­sul­tado a CT sentiu-se sem con­di­ções para con­ti­nuar o man­dato e apre­sentou a de­missão. A grande ma­ni­fes­tação de so­li­da­ri­e­dade e con­fi­ança trans­mi­tida pela mai­oria dos tra­ba­lha­dores, através de um abaixo-as­si­nado onde fa­ziam o apelo à sua con­ti­nu­ação, levou os mem­bros da CT a re­can­di­datar-se e foram eleitos, com man­dato para dar con­ti­nui­dade às de­ci­sões do ple­nário.

Em 24 de Junho de 2005 o acordo foi as­si­nado para vi­gorar em 2005, 2006 e 2007.

Num co­mu­ni­cado con­junto então subs­crito pela ad­mi­nis­tração e pela CT, afir­mava-se que «por um pe­ríodo de três anos, foi pos­sível in­tro­duzir, para a fá­brica da Azam­buja, um me­ca­nismo de fle­xi­bi­li­dade, cri­ando assim uma fer­ra­menta de ajuste da oferta à pro­cura, in­dis­pen­sável no mer­cado de veí­culos co­mer­ciais, for­te­mente de­pen­dente dos grandes ne­gó­cios de frotas».

No final do ano, a GM enal­tecia o de­sem­penho da fá­brica, re­gis­tando um au­mento da pro­dução de 11,2% em re­lação ao ano an­te­rior, co­tando-se entre as três me­lhores uni­dades da Eu­ropa em se­gu­rança, qua­li­dade e efi­ci­ência.

Em me­ados de 2006, cerca de um ano após a as­si­na­tura do acordo, os tra­ba­lha­dores da Opel Por­tugal foram con­fron­tados com a in­tenção da GM de trans­ferir a pro­dução da Azam­buja para Sa­ra­goça, com o pre­texto dos custos de­cor­rentes da dis­tância dos cen­tros lo­gís­ticos lo­ca­li­zados em Es­panha e na Ale­manha. Com esta de­cisão a mul­ti­na­ci­onal ame­ri­cana faltou ao com­pro­misso com os tra­ba­lha­dores, vi­o­lando o acordo so­cial para três anos, ao mesmo tempo que que­brava o con­trato com o go­verno Por­tu­guês, que a obri­gava a manter a pro­dução na Azam­buja pelo menos até 2009, como con­tra­par­tida do apoio con­ce­dido de mais de 40 mi­lhões de euros para mo­der­ni­zação da linha.

A partir desse mo­mento, os tra­ba­lha­dores, con­tando com o apoio das suas or­ga­ni­za­ções de classe e a so­li­da­ri­e­dade da po­pu­lação, das au­tar­quias lo­cais e das forças vivas da re­gião, tudo fi­zeram para tentar im­pedir a con­su­mação deste crime eco­nó­mico e so­cial co­me­tido pela GM sem qual­quer outra jus­ti­fi­cação que não fosse o seu in­te­resse es­tra­té­gico, uma vez que es­tava criada a tão pro­pa­lada paz so­cial, a fá­brica dava lucro e tinha todas as con­di­ções para res­ponder às ne­ces­si­dades da pro­dução – como a pró­pria ad­mi­nis­tração ad­mi­tira há menos de seis meses.

Em 19 de Junho de 2006 os tra­ba­lha­dores en­traram em greve, se­guindo-se um pro­cesso de luta que, para além da CT, contou com o apoio do sin­di­cato dos Me­ta­lúr­gicos e da CGTP-IN. A 29 de Julho teve lugar uma grande ma­ni­fes­tação em Lisboa, onde es­ti­veram pre­sentes o Se­cre­tário-geral da FEM (Fe­de­ração Eu­ro­peia da Me­ta­lurgia), re­pre­sen­tantes do co­mité eu­ropeu de em­presa e de di­versas fá­bricas do grupo – in­cluindo Sa­ra­goça – e cen­tenas de di­ri­gentes, de­le­gados sin­di­cais e mem­bros de CT, por­ta­dores da so­li­da­ri­e­dade dos tra­ba­lha­dores de todo o País.

O ca­pital não tem pá­tria

A luta de­sen­vol­vida atra­vessou fron­teiras e contou com a so­li­da­ri­e­dade ac­tiva dos tra­ba­lha­dores de ou­tras fá­bricas do grupo na Eu­ropa, ma­ni­fes­tada através de di­versas ini­ci­a­tivas, in­cluindo pa­ra­li­sa­ções do tra­balho e re­co­lhas de fundos di­na­mi­zadas e co­or­de­nadas pelo co­mité eu­ropeu de em­presa, numa acção de so­li­da­ri­e­dade trans­na­ci­onal ainda hoje con­si­de­rada iné­dita em si­tu­a­ções se­me­lhantes. Su­blinhe-se que os tra­ba­lha­dores da Opel, eles pró­prios so­li­dá­rios, en­tre­garam a to­ta­li­dade das verbas re­ce­bidas a ins­ti­tui­ções de so­li­da­ri­e­dade so­cial da re­gião.

Em sen­tido in­verso, os ini­migos dos tra­ba­lha­dores não per­deram a opor­tu­ni­dade para lançar uma cam­panha de de­sin­for­mação junto da opi­nião pú­blica, vi­sando limpar a imagem da GM e trans­ferir para os tra­ba­lha­dores e as suas or­ga­ni­za­ções a culpa da des­lo­ca­li­zação, por terem «ou­sado» lutar por me­lhores con­di­ções de vida e de tra­balho e re­sistir à des­re­gu­lação dos ho­rá­rios, à di­mi­nuição dos di­reitos e à des­va­lo­ri­zação pro­fis­si­onal.

A pre­o­cu­pação desta gente não era o fu­turo dos tra­ba­lha­dores nem a de­fesa da pro­dução na­ci­onal, mas tão-so­mente uti­lizar o fecho desta fá­brica como exemplo para pro­mover a te­oria da ine­vi­ta­bi­li­dade da po­lí­tica de baixos sa­lá­rios e do re­tro­cesso dos di­reitos e, ao mesmo tempo, pro­vocar o re­ceio e o de­sa­lento no seio dos tra­ba­lha­dores, para con­di­ci­onar a acção rei­vin­di­ca­tiva e en­fra­quecer a luta contra a des­re­gu­lação das re­la­ções la­bo­rais.

Não con­se­guiram os seus ob­jec­tivos. Os tra­ba­lha­dores não se dei­xaram in­ti­midar e a luta pela de­fesa da con­tra­tação co­lec­tiva, contra as al­te­ra­ções gra­vosas da le­gis­lação la­boral, contra as po­lí­ticas de di­reita e pela va­lo­ri­zação do tra­balho e dos tra­ba­lha­dores, não só pros­se­guiu como se in­ten­si­ficou. Mas fi­caram as de­tur­pa­ções e as men­tiras na car­tilha ide­o­ló­gica do ca­pital, que os pa­pa­gaios de ser­viço agora uti­lizam como arma de ar­re­messo contra os tra­ba­lha­dores da Au­to­eu­ropa e contra todos aqueles que re­sistem e lutam contra as in­jus­tiças e a ex­plo­ração.

En­tre­tanto a GM pros­se­guiu o pro­cesso de re­es­tru­tu­ração que levou ao en­cer­ra­mento de fá­bricas na Bél­gica (2700 tra­ba­lha­dores) e na Ale­manha e en­volveu, em 2009, a fá­brica de Sa­ra­goça. O grande mo­vi­mento de luta dos tra­ba­lha­dores, cujo ponto alto foi a ma­ni­fes­tação que reuniu 15 mil pes­soas em Sa­ra­goça, no dia 17 de Se­tembro de 2009, em de­fesa da fá­brica da Opel, ga­rantiu a con­ti­nui­dade da fá­brica e de­mons­trou que o fecho da fá­brica na Azam­buja nada teve a ver com as rei­vin­di­ca­ções e com a luta dos tra­ba­lha­dores.

Teve, sim, com o facto de aqui se en­con­trar o elo mais fraco para a GM ini­ciar a a sua es­tra­tégia de re­es­tru­tu­ração para a Eu­ropa: tra­tava-se da fá­brica mais pe­quena do grupo, si­tuada num país como Por­tugal, com fraco peso po­lí­tico, onde as po­lí­ticas de sub­missão aos in­te­resses do grande ca­pital e a pas­si­vi­dade de­mons­trada pelos su­ces­sivos go­vernos, face aos des­mandos das mul­ti­na­ci­o­nais, lhes ga­ran­tiam me­nores custos – tanto po­lí­ticos como eco­nó­micos e fi­nan­ceiros.

Se há ex­pe­ri­ência a tirar, é a da con­fir­mação de que o ca­pital não tem pá­tria e as mul­ti­na­ci­o­nais se des­lo­ca­lizam não por terem pre­juízo mas para irem atrás dos mer­cados, atraídas pelos apoios fi­nan­ceiros dos es­tados – que fun­ci­onam como au­tên­ticos lei­lões de fundos pú­blicos – e de mão-de-obra ba­rata, à pro­cura de ob­terem os mai­ores lu­cros no menor es­paço de tempo pos­sível, à custa de uma cada vez maior ex­plo­ração de quem tra­balha.

É por isso que os tra­ba­lha­dores pre­cisam de estar cada vez mais unidos e or­ga­ni­zados, para de­fen­derem os seus di­reitos e a sua dig­ni­dade pro­fis­si­onal e pros­se­guirem a luta por rei­vin­di­ca­ções ime­di­atas, pela va­lo­ri­zação do tra­balho e dos tra­ba­lha­dores, por um Por­tugal de pro­gresso, so­li­dário, de­sen­vol­vido e so­be­rano. Digam o que dis­serem os seus ini­migos.

Texto pu­bli­cado ori­gi­nal­mente no sítio Abril Abril