Missivas e etnografia: tudo ao nível

Rui Fernandes

O afo­ga­dilho do CDS de Cristas em juntar sa­bo­nária à es­puma

LUSA

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Grande es­pec­tá­culo me­diá­tico sus­citou uma mis­siva en­viada pelos Chefes Mi­li­tares ao MDN em torno da pro­ble­má­tica dos quan­ti­ta­tivos de mi­li­tares a in­cor­porar. Foi-lhe dada mesmo a na­tu­reza de iné­dita. Curta me­mória esta que in­vade a co­mu­ni­cação so­cial do­mi­nante, em que só conta a es­puma dos dias.

O iné­dito desta carta é a na­tu­reza do seu con­teúdo, ou seja, o «re­ga­teio» se devem ser só 200 mi­li­tares a en­trar ou se devem ser 600. Mais iné­dito é ser dado a en­tender que não sendo mais do que 200, pro­blemas vá­rios podem ocorrer, fi­cando assim desde já re­gis­tado que o ónus será do Go­verno. E ainda mais iné­dito que de­pois de todos os re­paros e alertas digam que «in­de­pen­den­te­mente do diá­logo ins­ti­tu­ci­onal es­ta­be­le­cido no quadro dos pro­cessos re­la­tivos aos efec­tivos mi­li­tares, não es­teve, não está, nem es­tará em causa o cum­pri­mento das mis­sões das Forças Ar­madas» (o su­bli­nhado é nosso). Bom, então qual o sen­tido da mis­siva?

Não temos qual­quer dú­vida de que existem ra­zões para uma mis­siva ao Go­verno aler­tando para um con­junto de pro­blemas. Só que essas ra­zões não constam da carta e se não constam é porque os Chefes con­si­deram que essas ma­té­rias são não ra­zões. Ra­zões como a do ca­minho que está a ser tri­lhado de pre­va­lência de mis­sões com­ple­men­tares àquelas que são as mis­sões fun­da­men­tais; do es­tado do IASFA e da sua res­posta aos pro­blemas dos mi­li­tares, sejam os de na­tu­reza so­cial, sejam os li­gados à saúde; das me­didas que tardam de va­lo­ri­zação so­cial e ma­te­rial dos mi­li­tares, in­cluindo dos jo­vens em RC e RV; das en­torses que o novo Re­gu­la­mento de Ava­li­ação do Mé­rito po­ten­ciará; do cres­cente des­res­peito pelas fun­ções atri­buídas a cada posto, sendo que há postos que ainda não têm fun­ções de­fi­nidas; dos pro­blemas li­gados com o re­e­qui­pa­mento e com a ma­nu­tenção de meios; dos pro­blemas que per­sistem no Es­ta­tuto dos Mi­li­tares, apesar das al­te­ra­ções po­si­tivas con­se­guidas a saca-ro­lhas na AR por ini­ci­a­tiva do PCP; da de­si­gual­dade gri­tante exis­tente no acesso a cargos por parte de ofi­ciais de ramo para ramo; e a lista podia con­ti­nuar... A esta luz a «iné­dita» mis­siva talvez jus­ti­fi­casse um outro ad­jec­tivo.

O ti­lintar das es­padas

A bem da ver­dade, e até porque anda aí pelo es­pectro me­diá­tico a con­versa da trans­pa­rência, nin­guém sabe re­al­mente por que razão são pre­cisos 28 mil, 30 mil ou 32 mil mi­li­tares. Re­giste-se e su­blinhe-se, porque há por aí almas ca­pazes de tudo, que não es­tamos a dizer que não são ne­ces­sá­rios. A na­tu­reza da­quilo que co­lo­camos é outra: é que é ne­ces­sário e van­ta­joso que os por­tu­gueses per­cebam o porquê e o per­cebam não com base numas jus­ti­fi­ca­ções vagas mas con­cretas. Até porque aquilo a que é dado muito des­taque é à par­ti­ci­pação ex­terna, mas essa en­volve, sen­si­vel­mente, so­mente dois mil mi­li­tares/​ano e se re­la­ti­va­mente a al­guns ramos, pela na­tu­reza das mis­sões que exercem, po­derá existir uma maior per­cepção, já o mesmo não su­ce­derá nou­tros.

Iné­dito é também neste con­texto o afo­ga­dilho do CDS de Cristas em juntar sa­bo­nária à es­puma. Já se es­queceu do «ti­lintar das es­padas» do tempo do mi­nistro Portas. O sen­tido de Es­tado que lhe enche re­cor­ren­te­mente os dis­cursos tem me­mória de horas.

Seja com mais 200 ou 600, temos para nós que a pre­va­lência das mis­sões das Forças Ar­madas são as suas mis­sões pri­má­rias e não as de na­tu­reza com­ple­mentar. E este é o as­pecto que im­porta cla­ri­ficar: são pre­cisos 600 para res­posta às mis­sões pri­má­rias ou os 600 são para res­posta a todas as mis­sões – as pri­má­rias e as com­ple­men­tares? É que, des­culpem lá os que acham e de­fendem que tudo deve ser missão das Forças Ar­madas e que devem acabar essas fron­teiras, cortar mato por causa dos in­cên­dios não é missão pri­mária, tal como não o é vi­giar matas, praias, fa­zerem de na­da­dores-sal­va­dores, etc., etc. Podem co­la­borar? Podem. Mas podem na es­trita me­dida em que isso não com­pro­meta as suas mis­sões fun­da­men­tais. Temos dú­vidas de que seja este o en­ten­di­mento pre­va­le­cente, além do mais porque per­mite um enorme tra­ta­mento me­diá­tico de pro­jecção da «marca», ou seja, do ramo mi­litar que es­teja en­vol­vido, as­pecto que nos dias de hoje pa­rece pre­o­cupar so­bre­ma­neira os res­pon­sá­veis. Aliás, talvez seja por isso que o Al­mi­rante CEMA, no des­file para as­si­nalar os 700 anos da Ma­rinha, pôs a des­filar mi­li­tares com uma farda do sé­culo XIX (mesmo que a mesma não conste do Re­gu­la­mento de Uni­formes) e, se­gundo no­tícia (DN de 5/​2) pre­tende eter­niza-la. É giro, dá para tirar mais umas fotos. A pros­se­guir neste ca­minho, o Exér­cito fará o mesmo, e ainda ve­remos a PSP a des­filar com uma dúzia de an­tigos carros da po­lícia «os ca­ro­chas», co­nhe­cidos também pelo nome de «ní­veas». Ou seja, os des­files pas­sarão a ser et­no­grá­ficos. Está tudo ao nível.

 



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