Sobre o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels

TE­ORIA DE VAN­GUARDA Ma­ni­festo de quê? É o que Marx e En­gels nos es­cla­recem logo na pri­meira pá­gina do Ma­ni­festo: «Já é tempo de os co­mu­nistas ex­porem aber­ta­mente pe­rante o mundo in­teiro o seu modo de ver, os seus ob­jec­tivos, as suas ten­dên­cias e de con­tra­porem à lenda do es­pectro do co­mu­nismo um Ma­ni­festo do pró­prio par­tido.» Ou como dirão no pre­fácio à edição alemã de 1872: tra­tava-se de ela­borar «um pro­grama teó­rico e prá­tico por­me­no­ri­zado do Par­tido».

De­safio à ca­pa­ci­dade para en­tender o mundo e o trans­formar

Com o Ma­ni­festo, Marx e En­gels do­taram a classe ope­rária de um pro­grama pró­prio, cul­mi­nando o pro­cesso de for­mação da pri­meira or­ga­ni­zação in­ter­na­ci­o­na­lista do pro­le­ta­riado, a Liga dos Co­mu­nistas. É isto que marca uma vi­ragem de­ci­siva na his­tória do mo­vi­mento ope­rário e terá nele uma in­fluência sem pre­ce­dentes porque pro­cla­mava pela pri­meira vez a ta­refa re­vo­lu­ci­o­nária da classe ope­rária: pôr fim ao modo de pro­dução ca­pi­ta­lista, acabar com a ex­plo­ração do homem pelo homem, cons­ti­tuir uma so­ci­e­dade sem classes, uma so­ci­e­dade ver­da­dei­ra­mente hu­mana. E esta ta­refa não apa­recia como a ex­pressão do de­sejo de re­a­li­zação de qual­quer se­cular sonho dos ho­mens, mas (e aqui está o novo) como re­sul­tado do co­nhe­ci­mento das leis e ten­dên­cias do pró­prio de­sen­vol­vi­mento so­cial. Como se diz no Ma­ni­festo: «As pro­po­si­ções teó­ricas dos co­mu­nistas não re­pousam de modo ne­nhum em ideias, prin­cí­pios, que foram in­ven­tados ou des­co­bertos por este ou aquele me­lho­rador do mundo. São apenas ex­pres­sões ge­rais de re­la­ções efec­tivas de uma luta de classes que existe, de um mo­vi­mento his­tó­rico que se pro­cessa di­ante dos nossos olhos.»

O Ma­ni­festo veio, pois, for­necer aos pro­le­tá­rios or­ga­ni­zados «em par­tido po­lí­tico» uma te­oria de van­guarda, por isso se diz que, com ele, o so­ci­a­lismo ci­en­tí­fico se funde com o mo­vi­mento ope­rário, con­fe­rindo-lhe um ca­rácter ver­da­dei­ra­mente re­vo­lu­ci­o­nário. Fusão ne­ces­sária, que Le­nine ex­pri­mirá, no co­meço do sé­culo, na cé­lebre frase do seu Que Fazer?: «Sem te­oria re­vo­lu­ci­o­nária não pode haver também mo­vi­mento re­vo­lu­ci­o­nário.»

Uma te­oria re­vo­lu­ci­o­nária

Ve­jamos então al­guns as­pectos dessa te­oria re­vo­lu­ci­o­nária.

Como é sa­bido, o I ca­pí­tulo do Ma­ni­festo abre com a cé­lebre frase: «A his­tória de toda a so­ci­e­dade até aqui é a his­tória de lutas de classes.» Ora, em carta a Wey­de­meyer de 1852, cri­ti­cando os que con­si­de­ravam «as con­di­ções so­ciais em que a bur­guesia do­mina como o ponto úl­timo, como o non plus ultra, da his­tória», Marx apro­veita para es­cla­recer o que ele trouxe de novo sobre as classes e as lutas de classes: «No que me diz res­peito, não me cabe o mé­rito de ter des­co­berto nem a exis­tência das classes na so­ci­e­dade mo­derna nem a sua luta entre si. Muito antes de mim, his­to­ri­a­dores bur­gueses ti­nham ex­posto o de­sen­vol­vi­mento his­tó­rico desta luta das classes, e eco­no­mistas bur­gueses a ana­tomia eco­nó­mica das mesmas. O que de novo eu fiz, foi: 1. de­mons­trar que a exis­tência das classes está apenas li­gada a de­ter­mi­nadas fases de de­sen­vol­vi­mento his­tó­rico da pro­dução; 2. que a luta das classes conduz ne­ces­sa­ri­a­mente à di­ta­dura do pro­le­ta­riado; 3. que esta mesma di­ta­dura só cons­titui a tran­sição para a su­pe­ração de todas as classes e para uma so­ci­e­dade sem classes […].»

Marx sin­te­tiza aqui la­pi­dar­mente o ca­rácter re­vo­lu­ci­o­nário da sua te­oria. E po­demos dizer que todo o I ca­pí­tulo do Ma­ni­festo é a de­mons­tração his­tó­rica destes três pontos, tão su­cintos mas tão ricos de con­teúdo, enun­ci­ados quatro anos mais tarde na carta a Wey­de­meyer.

O que nos diz em re­sumo esse ca­pí­tulo?

A so­ci­e­dade bur­guesa está di­vi­dida em duas classes fun­da­men­tais, com in­te­resses opostos, an­ta­gó­nicos: a bur­guesia, for­mada pelos pro­pri­e­tá­rios dos meios de pro­dução, e o pro­le­ta­riado, que vive apenas da venda da sua força de tra­balho.

O modo de pro­dução ca­pi­ta­lista de­sem­pe­nhou um papel al­ta­mente pro­gres­sivo em re­lação aos que o pre­ce­deram. Num es­paço de tempo his­to­ri­ca­mente breve, mercê de uma ex­plo­ração de­sen­freada e da pi­lhagem co­lo­nial, o ca­pi­ta­lismo de­sen­volveu po­de­rosas forças pro­du­tivas, der­rubou fron­teiras na­ci­o­nais, formou um mer­cado mun­dial. Apo­derou-se do apa­relho de Es­tado: «O mo­derno poder de Es­tado é apenas uma co­missão que ad­mi­nistra os ne­gó­cios co­mu­ni­tá­rios de toda a classe bur­guesa.» Mas este pró­prio de­sen­vol­vi­mento das forças pro­du­tivas, a partir de um certo grau, é to­lhido pelas re­la­ções de pro­dução bur­guesas: o ca­rácter so­cial da pro­dução entra em choque com a apro­pri­ação in­di­vi­dual fun­dada na pro­pri­e­dade pri­vada dos meios de pro­dução. Daí as crises de so­bre­pro­dução, o de­sem­prego. O ca­pi­ta­lismo não pode as­se­gurar a uti­li­zação das forças pro­du­tivas no in­te­resse de toda a so­ci­e­dade. A trans­for­mação da pro­pri­e­dade ca­pi­ta­lista em pro­pri­e­dade so­cial torna-se uma ne­ces­si­dade exi­gida pelas pró­prias leis ine­rentes à pro­dução ca­pi­ta­lista.

A classe ope­rária re­volta-se contra a ex­plo­ração. A bur­guesia cria os seus «co­veiros» e os cons­tru­tores de uma so­ci­e­dade li­berta da ex­plo­ração. «O pri­meiro passo na re­vo­lução ope­rária», dizem Marx e En­gels, «é a ele­vação do pro­le­ta­riado a classe do­mi­nante, a con­quista da de­mo­cracia pela luta». Não é ainda uti­li­zada a ex­pressão «di­ta­dura do pro­le­ta­riado» mas o con­ceito está lá e não se opõe à de­mo­cracia (é a di­ta­dura da imensa mai­oria sobre uma mi­noria).

Pros­se­guem Marx e En­gels: «O pro­le­ta­riado usará a sua do­mi­nação po­lí­tica para ar­rancar a pouco e pouco todo o ca­pital à bur­guesia […] e para mul­ti­plicar o mais ra­pi­da­mente pos­sível a massa das forças de pro­dução. Na­tu­ral­mente isto só pode pri­meiro acon­tecer por meio de in­ter­ven­ções des­pó­ticas [co­er­civas] no di­reito de pro­pri­e­dade e nas re­la­ções de pro­dução bur­guesas, através de me­didas, por­tanto, que eco­no­mi­ca­mente pa­recem in­su­fi­ci­entes e in­sus­ten­tá­veis mas que no de­curso do mo­vi­mento levam para além de si mesmas e são ine­vi­tá­veis como meios de re­vo­lu­ci­o­na­mento de todo o modo de pro­dução.» Antes de enun­ci­arem estas me­didas pre­vinem que elas «serão na­tu­ral­mente di­versas con­so­ante os di­versos países», isto é, con­so­ante os di­versos graus e es­pe­ci­fi­ci­dades de de­sen­vol­vi­mento do ca­pi­ta­lismo nos di­versos países. Assim sendo, em vez de enu­me­rarmos aqui as me­didas que então Marx e En­gels pro­pu­nham, in­da­ga­remos antes do ob­jec­tivo por elas vi­sado. Co­me­çando por lem­brar que «em sen­tido pró­prio, o poder po­lí­tico é o poder or­ga­ni­zado de uma classe para a opressão de uma outra», dizem Marx e En­gels: «Se o pro­le­ta­riado […] por uma re­vo­lução se faz classe do­mi­nante e como classe do­mi­nante su­prime vi­o­len­ta­mente as ve­lhas re­la­ções de pro­dução, então su­prime jun­ta­mente com estas re­la­ções de pro­dução as con­di­ções de exis­tência da opo­sição de classes, as classes em geral, e, com isto, a sua pró­pria do­mi­nação como classe.» Por­tanto, de­sa­pa­re­ci­mento das classes, ex­tinção do Es­tado como ins­tru­mento de do­mi­nação de uma classe sobre outra — eis o ob­jec­tivo da re­vo­lução pro­le­tária.

O papel de van­guarda dos co­mu­nistas
e a po­lí­tica de ali­anças

No ca­pí­tulo II do Ma­ni­festo, Marx e En­gels dão-nos uma aná­lise por­me­no­ri­zada da re­lação dos co­mu­nistas com o mo­vi­mento ope­rário e o mo­vi­mento re­vo­lu­ci­o­nário em geral.

Desde logo há que ob­servar que os co­mu­nistas «não têm ne­nhuns in­te­resses se­pa­rados dos in­te­resses do pro­le­ta­riado todo». Daqui de­corre, por­tanto, que a acção dos co­mu­nistas não tem a sua jus­ti­fi­cação em si mesma, mas em servir o pro­le­ta­riado; no en­tanto, nessa acção em de­fesa dos in­te­resses do pro­le­ta­riado cabe-lhes um papel de van­guarda. Nas pa­la­vras do Ma­ni­festo: «Os co­mu­nistas são, pois, na prá­tica, o sector mais de­ci­dido, sempre im­pul­si­o­nador, dos par­tidos ope­rá­rios de todos os países; na te­oria, eles têm, sobre a res­tante massa do pro­le­ta­riado, a van­tagem da in­te­li­gência das con­di­ções, do curso e dos re­sul­tados ge­rais do mo­vi­mento pro­le­tário.»

Ser van­guarda re­quer assim con­di­ções prá­ticas e teó­ricas. É nesse sen­tido que nos Es­ta­tutos do nosso Par­tido ao afirmar-se que «o papel de van­guarda do Par­tido de­corre da sua na­tu­reza de classe» se acres­centa que ele de­corre também «do acerto das suas aná­lises e da sua ori­en­tação po­lí­tica, do pro­jecto de uma nova so­ci­e­dade, da co­e­rência entre os prin­cí­pios e a prá­tica e da ca­pa­ci­dade de or­ga­nizar e di­rigir a luta po­pular em li­gação per­ma­nente, es­treita e in­dis­so­lúvel com as massas, mo­bi­li­zando-as e ga­nhando o seu apoio.»

No ca­pí­tulo IV do Ma­ni­festo, por seu lado, é a re­lação dos co­mu­nistas com os par­tidos que se opõem aos po­deres ins­ti­tuídos que é fo­cada. Em per­feita con­so­nância com as con­cep­ções acima re­fe­ridas, Marx e En­gels pro­clamam que «por toda a parte os co­mu­nistas apoiam todo o mo­vi­mento re­vo­lu­ci­o­nário contra as si­tu­a­ções so­ciais e po­lí­tica exis­tentes» e, lu­tando para «al­cançar os fins e in­te­resses ime­di­atos da classe ope­rária», no en­tanto, os co­mu­nistas têm sempre a cons­ci­ência de que «no mo­vi­mento pre­sente re­pre­sentam si­mul­ta­ne­a­mente o fu­turo do mo­vi­mento.»

Daqui se re­tira, pois, a lição, por um lado, de que a po­lí­tica de ali­anças dos co­mu­nistas as­senta na con­si­de­ração das con­di­ções his­tó­ricas con­cretas da luta com que a classe ope­rária e as de­mais forças pro­gres­sistas se de­frontam; por outro lado, de que na pros­se­cução dos ob­jec­tivos ime­di­atos da classe ope­rária, os co­mu­nistas ex­cluem qual­quer forma de opor­tu­nismo — quer o que sa­cri­fica os in­te­resses ime­di­atos ao ob­jec­tivo final quer o que so­brepõe o ob­jec­tivo final às rei­vin­di­ca­ções ime­di­atas — e nunca ab­dicam da sua iden­ti­dade pró­pria e dos prin­cí­pios cen­trais da sua na­tu­reza de classe, assim como do seu ob­jec­tivo su­premo de luta por uma so­ci­e­dade so­ci­a­lista e co­mu­nista.

O Ma­ni­festo – Um de­safio

No pre­fácio à edição alemã de 1872, pas­sados 25 anos da pu­bli­cação do Ma­ni­festo, Marx e En­gels in­ter­rogam-se sobre aquilo a que po­de­ríamos chamar a va­li­dade e a ac­tu­a­li­dade do Ma­ni­festo.

Aí es­crevem: «Em­bora as con­di­ções muito se te­nham al­te­rado nos úl­timos vinte e cinco anos, os prin­cí­pios ge­rais de­sen­vol­vidos neste Ma­ni­festo con­servam, grosso modo, ainda hoje a sua plena cor­recção.» Cento e se­tenta anos de­pois po­demos subs­crever estas pa­la­vras. Mas, dizem de se­guida Marx e En­gels, «a apli­cação prá­tica» dos prin­cí­pios ex­postos no Ma­ni­festo o «pró­prio Ma­ni­festo o de­clara», como se re­feriu «de­pen­derá sempre e em toda a parte das cir­cuns­tân­cias his­to­ri­ca­mente exis­tentes». Não há, pois, um «mo­delo» de re­vo­lução a aplicar in­va­ri­a­vel­mente em todas as si­tu­a­ções, como o nosso Par­tido tem re­a­fir­mado. Por isso, no seu Pro­grama Uma De­mo­cracia Avan­çada Os Va­lores de Abril no Fu­turo de Por­tugal, se afirma que «o sis­tema so­ci­a­lista em Por­tugal as­su­mirá ine­vi­ta­vel­mente par­ti­cu­la­ri­dades e ori­gi­na­li­dades re­sul­tantes não só das re­a­li­dades ob­jec­tivas do País como também das formas con­cretas que até então as­sumir a luta de classes, a evo­lução eco­nó­mica, so­cial e po­lí­tica e a pró­pria con­jun­tura in­ter­na­ci­onal».

Re­gres­sando ao pre­fácio que vimos ci­tando, Marx e En­gels re­co­nhecem co­e­ren­te­mente que «o pro­grama» con­subs­tan­ciado nas «me­didas re­vo­lu­ci­o­ná­rias pro­postas no fim da secção II» de o Ma­ni­festo «está hoje, num passo ou noutro, an­ti­quado».

O que tor­nara an­ti­quado o pro­grama? Marx e En­gels enu­meram três ra­zões: 1. o «imenso de­sen­vol­vi­mento da grande in­dús­tria»; 2. «o pro­gresso da or­ga­ni­zação do par­tido da classe ope­rária»; 3. as «ex­pe­ri­ên­cias prá­ticas, pri­meiro da re­vo­lução de Fe­ve­reiro, e muito mais ainda da Co­muna de Paris».

Ora, pelo nosso lado, pen­samos que também hoje é em di­rec­ções se­me­lhantes que há que de­sen­volver o pro­jecto co­mu­nista enun­ciado há 170 anos pelo Ma­ni­festo. Con­cre­ti­zando: 1. apre­ender pro­fun­da­mente o de­sen­vol­vi­mento do ca­pi­ta­lismo e das suas con­tra­di­ções nos nossos dias; 2. tornar o par­tido da classe ope­rária capaz de re­vo­lu­ci­onar as con­di­ções exis­tentes; 3. tirar as li­ções das «ex­pe­ri­ên­cias prá­ticas» en­tre­tanto re­a­li­zadas, no­me­a­da­mente da Re­vo­lução de Ou­tubro: do seu triunfo, das suas re­a­li­za­ções, dos seus erros e da sua der­rota.

O Ma­ni­festo é também por isso um exal­tante de­safio à nossa ca­pa­ci­dade para en­tender o mundo de hoje e de o trans­formar re­vo­lu­ci­o­na­ri­a­mente.

Ler o Ma­ni­festo é pre­ciso!