Os com-abrigo

Correia da Fonseca

Há umas largas se­manas, era então o pleno In­verno (de tal modo frio que bem me­recia a maiús­cula ini­cial que o AO90 lhe quis tirar), o se­nhor Pre­si­dente da Re­pú­blica mos­trou-se muito sen­sível à exis­tência dos cha­mados sem-abrigo nas grandes ci­dades. Agora, com o frio já em fase de grande mo­de­ração ainda que, na­tu­ral­mente, pro­me­tendo voltar um dia, ir­rompeu na pri­meira linha das vi­sí­veis pre­o­cu­pa­ções co­lec­tivas, na te­má­tica abor­dada por al­guns media e também na As­sem­bleia da Re­pú­blica, uma grave questão que bem po­derá ser de­sig­nada por «o pro­blema dos com-abrigo». Trata-se dos mi­lhões de ci­da­dãos por­tu­gueses que para se abri­garem e às suas fa­mí­lias do frio, da chuva e de todas as de­mais agres­sões a que ficam ex­postos os que não têm ha­bi­tação (os «sem eira nem beira», dizia dantes algum povo), se viram obri­gados a ar­rendar casa, por esse ar­ren­da­mento pa­gando quase sempre uma per­cen­tagem do ren­di­mento fa­mi­liar que ul­tra­passa em muito o quan­ti­ta­tivo acon­se­lhado pelos tra­tados muito teó­ricos e muito alhe­ados das cir­cuns­tân­cias con­cretas. Ora, acon­teceu que re­cen­te­mente, so­bre­tudo nas ci­dades mai­ores mas não apenas nelas, por ra­zões di­versas em que se des­ta­cará talvez um afluxo de tu­ristas com in­ten­ções par­ci­al­mente re­si­den­ciais mas não apenas por isso, as rendas de casa estão numa di­nâ­mica al­tista. Daí que tenha ex­plo­dido uma prá­tica eti­ca­mente es­can­da­losa por parte dos se­nho­rios: ex­pul­sarem os in­qui­linos an­tigos, que pagam rendas com­por­tá­veis pelos seus muito li­mi­tados ren­di­mentos, para subs­titui-los por in­qui­linos que podem pagar rendas muito su­pe­ri­ores. É, para tais se­nho­rios, a trans­for­mação dos ve­lhos in­qui­linos numa es­pécie de novo vol­frâmio capaz de en­ri­quecê-los.

À es­pera da AR

Tanto quanto se sabe, e não se sabe muito porque a TV não tem sido muito lo­quaz acerca do as­sunto, as­cendem a muitos mi­lhares os ci­da­dãos por­tu­gueses mer­gu­lhados em an­gústia por se sen­tirem ame­a­çados de fi­carem sem tecto. Porém, a questão já havia sido agra­vada du­rante o go­verno PSD/​CDS por efeito da cha­mada Lei Cristas por ser da res­pon­sa­bi­li­dade da ex-mi­nistra As­sunção Cristas. De facto, a Lei Cristas, também co­nhe­cida por Lei dos Des­pejos, ofe­receu aos se­nho­rios um in­te­res­sante campo de ma­no­bras para ex­plo­rarem mais in­ten­sa­mente a ne­ces­si­dade dos ci­da­dãos de se abri­garem da chuva e do frio: os seus efeitos re­ve­laram-se tão ca­la­mi­tosos e de tão facto cruéis que há muito se impõe a sua re­vo­gação em nome de meros sen­ti­mentos hu­ma­ni­tá­rios. Acon­tece até que, não fosse o caso de bem sa­bermos que por dentro das coisas é que as coisas são, seria de es­tra­nhar que a te­le­visão, sempre tão fas­ci­nada por des­graças e in­fe­li­ci­dades vá­rias, nunca se tenha apli­cado a uma re­por­tagem acerca dos efeitos da Lei Cristas quando ade­qua­da­mente uti­li­zada pelos se­nho­rios. De qual­quer modo, terá agora a pa­lavra a AR. Es­pe­remos.




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