Federico García Lorca, o poeta dos sete instrumentos

EVOCAÇÃO Fe­de­rico García Lorca é uma fi­gura de ar­tista em­ble­má­tica. Poeta, ele será também dra­ma­turgo e homem de te­atro, com­po­sitor e ar­tista plás­tico. O seu en­vol­vi­mento com todas estas artes é, também, um en­vol­vi­mento com as tra­di­ções po­pu­lares da sua terra natal, a An­da­luzia.

Nasceu em Fu­ente Va­queros, em Gra­nada, Es­panha, no dia 5 de Junho de 1898. Por im­po­sição da fa­mília, es­tudou Di­reito na Uni­ver­si­dade de Gra­nada. Cinco anos de­pois de 1914, data da en­trada no curso, mudou-se para Ma­drid onde se tor­nará amigo de Buñuel, Dalí e Ra­fael Al­berti.

Li­gado ao mo­vi­mento que ficou co­nhe­cido como ge­ração de 27, e an­te­ci­pando, de al­guma forma, ver­tentes que ca­rac­te­rizam o mo­der­nismo, por um lado, a sua po­esia, a sua cri­ação dra­ma­túr­gica e mu­sical mer­gu­lham raízes no sangue e na seiva po­pular das fi­guras que po­voam o ter­ri­tório.

A sua po­esia co­meça por ser um re­lan­ça­mento da po­esia tra­di­ci­onal e po­pular que se reúne em Ro­man­cero Gi­tano (1924-27) pu­bli­cado em 1928 e Poema del cant jondo (1921-22), pu­bli­cado em 1931. Os po­emas do Ro­man­cero cons­troem um mito an­tro­po­ló­gico cen­trado no gi­tano en­qua­drado numa pai­sagem li­ri­ca­mente cons­ti­tuída e his­to­ri­ca­mente mar­cada, quer através de no­tí­cias do pren­di­mi­ento e da morte de An­tonio Torres He­redia, / hijo e nieto de Cam­bo­rios, / [que] com una vara de mimbre / va a Se­villa a ver los toros.


Mo­reno de verde luna

Anda des­pacio y gar­boso.

Sus em­pa­vo­nados bucle

le brillan entre los ojos.

A la mitad del ca­minho

cortó li­mones re­dondos,

y los fué ti­rando al agua

hasta que la puso oro,

Y a la mitad del ca­minho,

bajo las ramas de um olmo,

guardiã civil ca­mi­nera

lo llevó codo com codo.

 

quer do Ro­mance deLa guardi civil es­pañola, onde as ima­gens sin­te­tizam essa guarda através de uma imagem so­nora e de ima­gens fal­sa­mente so­noras que ver­da­dei­ra­mente falam do medo que ins­piram.

 

Los ca­ballos ne­gros son.

Las her­ra­duras son ne­gras.

Sobre las capas re­lucen

man­chas de tinta y cera.

Ti­enen, por esso no lloran,

de plomo las ca­la­veras.

 

[…]

 

Pasan, si qui­eren pasar,

y ocultan en la ca­beza

una vaga as­tro­nomia

de pis­tolas in­con­cretas.

 

Oh ciudad de los gi­tanos!

En las es­quinas ban­deras,

La luna y la ca­la­baza

con las guindas en con­serva.

Oh ciudad de los gi­tanos!

Quién te vió y no te re­cu­erda?

Ciudad de dolor y al­mizcle

con las torres de ca­nela.

 

No fim do curso viaja para os Es­tados Unidos e Cuba, pe­ríodo em que es­creve po­emas mo­der­nistas de modo sur­re­a­lista. Ode a Walt Whitman, 1933, Poeta em Nueva York (1929-30), pu­bli­cado em 1940.

As­sas­si­nado muito jovem, a sua morte (em 1936) será man­tida en­volta em algum mis­tério em­bora em grande parte fa­bri­cado pelo fas­cismo na ten­ta­tiva de ocultar a sua cum­pli­ci­dade nesse acon­te­ci­mento. Este as­sas­si­nato choca pro­fun­da­mente os in­te­lec­tuais ibé­ricos que se­guem aten­ta­mente a guerra civil de Es­panha de­sen­ca­deada a partir de uma re­be­lião contra o go­verno de Frente Po­pular eleito de­mo­cra­ti­ca­mente na Re­pú­blica es­pa­nhola. Os po­etas, de­sig­na­da­mente anar­quistas e co­mu­nistas es­pa­nhóis e por­tu­gueses, com­pre­endem o que está em jogo na Re­pú­blica: as forças nazi-fas­cistas pre­param o que virá a ser a se­gunda Guerra Mun­dial e re­velam o que se pre­param para fazer com a li­ber­dade: li­quidá-la.

Se Garcia Lorca é o as­sas­si­nado in­di­vi­dual que mais co­move esses in­te­lec­tuais, a cha­cina co­lec­tiva que mais pro­testos de­sen­ca­deia é a de Guer­nica, pin­tada por Pi­casso (é o bom­bar­de­a­mento sel­vagem de uma al­deia basca), na qual Carlos de Oli­veira des­cobre um anjo cam­ponês que dá a ver a cena, num poema de 1971, in­ti­tu­lado Des­crição da guerra em Guer­nica.

Estes pro­testos tra­duzem-se de outro modo nos ci­da­dãos anó­nimos que vão com­bater para Es­panha junto com os rojos e que mais tarde fogem para França onde lu­tarão com os ale­mães que a virão a ocupar.

Assim, An­tónio Ma­chado, nas suas Po­e­sías de La Guerra, pu­bli­cará «El crimen fue en Gra­nada» que se tornou a epí­grafe do Ro­mance de Fe­de­rico de Jo­a­quim Na­mo­rado, e Mário Di­o­nísio pu­blica «Elegia ao com­pa­nheiro morto», que é uma glosa de «Llanto por Ig­nacio Sán­chez Me­jías» de García Lorca, em que a morte do com­pa­nheiro se torna uma alusão à morte de um pri­si­o­neiro po­lí­tico.

Ma­nuel da Fon­seca deixar-se-à guiar pela mu­si­ca­li­dade e pela pro­sódia oral e po­pular da po­esia de Lorca, cons­truindo a co­mu­ni­dade do Alen­tejo, cen­trada, por sua vez, na vida do maltês.

No te­atro Lorca é fun­dador do grupo La Bar­raca e es­creve três peças épicas sobre o uni­verso rural, con­cen­trando-se nas fi­guras das mu­lheres e da sua força, são elas: Bodas de Sangre (1933) Yerma ( 1934) e Casa de Ber­narda Alba (1936) que se des­tacam de um con­junto de peças com acen­tuado pendor lí­rico como La Za­pa­tera Pro­di­giosa ( 1930), Amor de per­limpim com Be­lisa en su jardin (1933) e Dona Ro­sita la sol­tera o el len­guage de las flores ( 1935). A peça El pu­blicoé uma peça sur­re­a­lista só pu­bli­cada, pos­tu­ma­mente.

De igual modo, Lorca é um ta­len­toso mú­sico, é co­nhe­cido o seu ta­lento para a mú­sica ainda antes de saber falar.

E des­peço-me de Fe­de­rico no ritmo agora, dos versos do poeta em Nova Iorque.


«
DES­PE­DIDA


No du­erme nadie por el cielo. Nadie. nadie.

No du­erme nadie.

Lorca

 

Não é agora a mão do pai que o le­vava à noite por Évora.

Era a sua voz que lia em voz alta.

Essa voz fazia o som que era então para o filho

o som de Es­panha. E por con­ti­gui­dade era também

um som pos­sível para aquele sul dei­tado até ao ho­ri­zonte

em que o céu é ainda terra: a sua alta res­pi­ração ou

a branca as­fixia na noite que não dorme?

A voz acendia o ál­cool e nin­guém podia dormir – tu não po­dias –

en­quanto o som do poema se er­guia, rit­mava o mundo e o seu céu

des­li­zava na pa­lavra muslos que era como peixes sur­pre­en­didos.

A voz e o poema vi­bravam a an­si­e­dade e o or­gulho,

a de­ses­pe­rada ele­gância de he­róis obs­curos, a in­qui­e­tação

e a ter­nura inábil da­quele pai que viera louco da guerra civil.

Quando ma­taram Fe­de­rico, ha­veria uma lua ver­melha...

Não a podes com­parar com a que havia quando

Woz­zeck bebe na faca o sangue de Marie.

Anos mais tarde, quando aquele que lia em voz alta morre

não ti­veste uma lua para lhe dar. É também por isso

que nin­guém dorme no céu do mundo. O filho dava-lhe a mão

para que ele sou­besse que es­tava ali: "Sou eu, outra vez».

Mas era também já o de­sastre, a tris­teza em voz baixa.

Estes úl­timos anos co­lheram-te de­ma­si­ados amigos

Pela morte as­sas­si­nados. Agora não dormem já.

No du­erme nadie por el mundo. Nadie. Nadie.

Não podes já te­le­fonar-lhes; não podes chamá-la ou ouvir

como te chama; ne­nhum gesto po­derá fazer o arco cin­ti­lante

entre vi­ventes nós, e abrir uma pas­sagem no mundo.

Ne­nhum, ne­nhuma amante po­derá agora olhar-lhes

a pedra res­pi­rante do sono ar­dendo raso e de­vagar.

Não lhes podes per­guntar por exemplo

porque que­reria ele dormir o sueño

da­quele me­nino. Ou porque é que esse me­nino os­curo

queria cor­tarse el co­razón en alta mar?

E se o cor­tasse, que rosa, que fe­rida se abriria no mar?

Como será a onda que tal sangue faz, tinge, dis­para?

Po­derei eu mesmo assim dizer e pro­meter que

nada ca­lará o silvo dessa rosa que se abre na água

e é um mar.

Um mar, uma rosa de sangue e todo o es­que­ci­mento.

Então al­guém se volta para a pa­rede cega e apaga a luz do can­de­eiro

desta lua ver­melha que vive na casa.

A sala fica feita da ma­téria da noite.

E a noite é um mar um la­bi­rinto com céu de rocha.

Já nin­guém

verá na­quela ja­nela a chama da vi­gília, a fi­gura da so­lidão

o gesto da au­sência: o ves­tígio da pre­sença; pró­xima e dis­tante.

Só podes es­cutar o fluxo e o re­fluxo

do grande mar que o sangue tinge numa onda que agora se desfaz.

Olhas então o negro do negro dentro e fora

da casa, sob e sobre as pontes e as mar­gens dos mundos.

E es­peras.

E pedes o sono. Mas

no du­erme nadie por el mundo.

Es­tendes os dedos – ha­verá talvez um clamor sub­merso

o da noite in­sone res­pon­dendo à noite dos que não dormem.

Como se a po­esia guar­dasse a voz dos que a lêem alto,

na noite contra o si­lêncio, a peste, a bar­bárie...

Lês o poema e

ouves outra vez a voz que lia em voz alta.

En alta mar, na mais alta flor, a canção

da­quele ma­ri­nheiro que é sempre o úl­timo.

E vem ter con­tigo.»

 

Ex­certo de «Um Pai, uma bi­bli­o­teca, uma des­pe­dida» in A Foz em Delta, ed. «Avante!», 2018