Fronteiras e Forasteiros

Sérgio Dias Branco

O Outro Lado da Es­pe­rança (Toivon tu­olla pu­olen, 2017), ga­lar­doado com o Urso de Prata de Me­lhor Re­a­li­zador no Fes­tival de Berlim, foi re­cen­te­mente lan­çado em DVD. É uma opor­tu­ni­dade para re­vi­sitar uma das mais sig­ni­fi­ca­tivas obras ci­ne­ma­to­grá­ficas es­tre­adas no ano pas­sado em Por­tugal.

De­pois de Le Havre (2011), o fin­landês Aki Kau­rismäki di­rige um novo filme, O Outro Lado da Es­pe­rança, am­bi­en­tado numa ci­dade por­tuária. Ambos são também nar­ra­tivas sobre a vida dos re­fu­gi­ados que chegam ao con­ti­nente eu­ropeu e das co­mu­ni­dades que os têm re­jei­tado ou aco­lhido. No filme an­te­rior, um me­nino afri­cano chega num navio car­gueiro ao porto de Le Havre, na costa da Nor­mandia, e um velho es­critor, que de­sistiu de es­crever e se tornou en­gra­xador de sa­patos, acolhe-o em sua casa.

O Outro Lado da Es­pe­rança tem uma es­tru­tura nar­ra­tiva mais com­plexa, mas guiada pela mesma atenção à den­si­dade das re­la­ções hu­manas num con­texto pre­ciso. Desta vez, a acção de­corre em Hel­sín­quia, onde duas es­tó­rias co­meçam por se tocar e, mais tarde, se in­ter­ceptam. Aquilo que é uma fron­teira po­rosa no início, con­verte-se numa fron­teira fluída, uma sim­ples de­mar­cação. As per­so­na­gens prin­ci­pais con­ti­nu­arão a viver as suas es­tó­rias de re­en­contro, mas vivem igual­mente uma es­tória comum.

Khaled Ali emerge de um monte de carvão numa em­bar­cação de carga que acabou de atracar. Con­funde-se com a noite, passa des­per­ce­bido, como se fosse um ser sem rosto. Há um con­dutor que pára abrup­ta­mente o carro e olha para ele, as­sus­tado até à imo­bi­li­dade, mas de­pois re­toma a marcha. Khaled tinha fu­gido com a irmã da guerra na Síria. Ul­tra­pas­saram muitos obs­tá­culos até serem se­pa­rados na fron­teira da Hun­gria. O re­fu­giado apre­senta-se à po­lícia e pede asilo. Um tri­bunal fin­landês in­de­fere o pe­dido e de­cide a sua ex­tra­dição. A res­posta dele é fugir e contar apenas con­sigo, mas é sempre aju­dado por al­guém — mesmo quando é agre­dido com vi­o­lência por um grupo de ne­o­nazis.

Wal­demar Wiks­tröm se­para-se da sua mu­lher al­coó­latra. Era ele o con­dutor que parou o carro e olhou para Khaled. Wal­demar deixa de ser cai­xeiro-vi­a­jante e aposta todas as pou­panças que ame­a­lhou num jogo de pó­quer do qual sai ven­cedor. Com o di­nheiro que ga­nhou, compra um res­tau­rante onde tra­ba­lham três pes­soas. A em­pre­gada de mesa tra­ba­lhava como es­ta­giária não re­mu­ne­rada e passa a re­ceber um sa­lário. O re­cep­ci­o­nista é ques­ti­o­nado pelas au­to­ri­dades porque «pa­rece es­tran­geiro». O co­zi­nheiro ainda está a aprender o ofício.

É neste lugar de fo­ra­gidos de di­versos tipos que Khaled vai en­con­trar em­prego e aco­lhi­mento, de­pois de um re­en­contro agres­sivo e terno com Wal­demar. Os vín­culos que nascem das re­la­ções de tra­balho andam a par com os laços de so­li­da­ri­e­dade hu­mana. A con­fi­ança entre pes­soas vem do co­nhe­ci­mento de um nome e de uma es­tória. Segue-se a ami­zade.

Neste filme, o re­a­lismo do ab­surdo de Kau­rismäki fun­ciona como uma forma de su­blimar uma re­a­li­dade brutal, im­buído de uma co­mo­vente me­lan­colia. O humor é sus­sur­rado, de modo a não trair e a ali­mentar a arte hu­ma­nista do grande ci­ne­asta fin­landês. O ti­ming dos efeitos có­micos acerta com o tempo do peso e sig­ni­fi­cado de cada gesto. As pre­o­cu­pação te­má­ticas da obra vêm de dentro, não de fora. Quando Khaled é es­fa­queado, o ata­cante ra­cista e xe­nó­fobo chama-lhe «judeu», ró­tulo do ódio ao outro, ao di­fe­rente. E, no en­tanto, o na­ci­o­na­lista não vê se­quer a di­fe­rença, só vê uma ameaça a es­magar, uma imagem fo­men­tada pela si­mu­lação de uma guerra entre povos.

A mul­ti­cul­tu­ra­li­dade é um factor e um valor so­cial di­nâ­mico em O Outro Lado da Es­pe­rança, que faz coin­cidir a di­fe­rença com a igual­dade. A cul­tura traz con­sigo lei­turas e ex­pe­ri­ên­cias do mundo que podem ser par­ti­lhadas e en­ri­quecem as co­mu­ni­dades hu­manas. Mas a sim­ples apro­pri­ação cul­tural, sem es­tudo ou res­peito, dá origem a um epi­sódio mordaz quando o res­tau­rante serve co­mida ja­po­nesa porque «está na moda». O re­sul­tado é um in­tra­gável sushi feito com arenque sal­gado.




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