Relembrar Joaquim Lagoeiro e o regresso da escrita de Maria Judite de Carvalho

Domingos Lobo

Jo­a­quim La­go­eiro e Maria Ju­dite de Car­valho são nomes mai­ores da li­te­ra­tura por­tu­guesa

Jo­a­quim La­go­eiro nasceu a 6 de Se­tembro de 1918, no lugar de Veiros, Es­tar­reja, vindo a fa­lecer em Lisboa a 11 de Março de 2011. Cum­prir-se-ão por­tanto, em Se­tembro, cem anos do seu nas­ci­mento.

Poeta de um li­rismo as­cé­tico, co­mo­vente por vezes, também de uma ácida tor­rente sa­tí­rica que vem de To­len­tino; pro­sador exi­gente, de verbo ta­lhado na me­lhor tra­dição ro­mân­tica, pelo qual se in­sinua a he­rança ca­mi­liana, o pre­sen­cismo e a aná­lise so­cial do neo-re­a­lismo, Jo­a­quim La­go­eiro fi­cará na his­tória da Li­te­ra­tura, como bem re­fere Maria Al­zira Seixo, como «um fic­ci­o­nista hábil, de es­tilo en­xuto e es­crita dis­creta mas so­bri­a­mente tra­ba­lhada, e que aborda uma pro­ble­má­tica ati­nente às ques­tões mai­ores da so­ci­e­dade por­tu­guesa das úl­timas dé­cadas», mor­mente sobre o pe­ríodo feroz, de mi­séria e fome, so­fridos pelo povo no con­su­lado sa­la­za­rento.

Desse labor pro­só­dico, ac­tivo na de­núncia, sin­gular na forma de abor­dagem dos fe­nó­menos so­ciais do seu tempo e, em par­ti­cular, da sua re­gião de origem, re­gis­tamos esse po­de­roso e hu­mano ro­mance que é Viúvas de Vivos, que o fas­cismo não se coibiu, cum­prindo o seu papel his­tó­rico, de proibir, o que não im­pediu este ro­mance de fazer, até hoje, 4 edi­ções.

Viúvas de Vivos traça o drama das mu­lheres que viram os seus ho­mens partir em busca do sonho ame­ri­cano, e deles não mais ti­veram no­tícia: esses limbo que as faz viúvas de fan­tasmas.

Jo­a­quim La­go­eiro foi, so­bre­tudo, um exímio con­tador de es­tó­rias. Coisas cer­zidas com vagar de ar­tesão lú­cido e tenaz. Es­tó­rias curtas quase sempre, com tempos e res­pi­ra­ções cer­teiras, man­tendo a chama, a atenção viva do leitor, re­ma­tada téc­nica. Contos e no­velas mol­dados a pre­ceito, um es­ti­laço apu­rado, bu­ri­lado e destro, ágil nas re­ver­be­ra­ções da língua, mesmo quando finta os verbos e se ex­cede em la­ti­nó­rios co­lhidos na cepa dos pro­dí­gios lin­guís­ticos das terras do li­toral beirão. Um es­teta da ora­li­dade, das falas de an­tanho, ru­dezas avo­engas ele­men­tares, ver­ná­culo agreste, vivo, cur­tido, pre­sentes na sua vasta obra ro­ma­nesca, com des­taque para Os Fraldas, Mi­lagre em S. Bar­to­lomeu, Mar Vivo e Caiu um santo do altar.

Maria Ju­dite de Car­valho

A edi­tora Mi­no­tauro acaba de editar o 1.º vo­lume das Obras Com­pletas de Maria Ju­dite de Car­valho, que junta dois dos seus mais im­por­tantes textos: Tanta Gente, Ma­riana e As Pa­la­vras Pou­padas.

Com­pa­nheira de vida, luta e es­crita de Ur­bano Ta­vares Ro­dri­gues, ambos vi­vendo um exílio for­çado em Paris, cir­cuns­tância, em­bora pe­nosa, que lhes per­mitiu con­tactar com as pri­meiras abor­da­gens es­té­ticas do nou­veau roman e co­nhecer Camus, Sartre e André Mal­raux.

De re­gresso a Lisboa, Maria Ju­dite pros­segue o seu tra­balho como jor­na­lista, pro­du­zindo em pa­ra­lelo uma obra fic­ci­onal e poé­tica de re­fe­rência, exem­plar e pi­o­neira no con­texto so­cial, cul­tural e po­lí­tico em que se de­sen­volveu, na qual a so­lidão da mu­lher nos grandes es­paços ur­banos, o de­ses­pero, o de­sen­canto, o de­sejo, o si­lêncio, a hi­po­crisia são eri­gidos com rara ca­pa­ci­dade efa­bu­la­tória. De­ri­vantes con­cep­tuais que ela in­tegra num dis­curso ácido, de raiz poé­tica, ora trá­gico, ora gro­tesco, mas em que é de­tec­tável, e vêm co­ra­jo­sa­mente ex­pressas nestes dois textos, a luta pela igual­dade de di­reitos, in­de­pen­dência e dig­ni­dade da mu­lher face a uma so­ci­e­dade pa­dro­ni­zada pelo homem e vi­giada pela cí­nica moral sa­la­za­rista.

A obra de Ju­dite de Car­valho, no­me­a­da­mente essa ino­va­dora e fas­ci­nante arte de contar que é Tanta Gente, Ma­riana, e que As Pa­la­vras Pou­padas apro­fun­dará, an­te­cipa e é pa­ra­digma das lutas pos­te­ri­ores de uma ge­ração de mu­lheres es­cri­toras que terão na de­fesa do fe­mi­nismo, como forma de trans­for­mação so­cial, o ele­mento ca­ta­li­sador das suas pri­meiras, e re­le­vante, in­cur­sões li­te­rá­rias: Na­tália Nunes, cuja obra está a ser igual­mente re­e­di­tada, Te­resa Horta, Maria Isabel Bar­reno e Maria Velho da Costa.




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