Marx e a dimensão antropogenética da obra de arte

Manuel Gusmão

Na his­tória, as obras mo­di­ficam e acu­mulam os sen­tidos que nelas são lidos pela di­fe­rentes ge­ra­ções hu­manas

É co­nhe­cida a di­fi­cul­dade que Marx co­loca no final da «In­tro­dução à Crí­tica da Eco­nomia Po­lí­tica» (de 1857): essa di­fi­cul­dade con­funde-se com a da es­pe­ci­fi­ci­dade da his­tória tal como o mé­todo da eco­nomia po­lí­tica a en­frenta.

Mas a di­fi­cul­dade não está em com­pre­ender que a arte grega e a epo­peia estão li­gadas a certas formas do de­sen­vol­vi­mento so­cial. A di­fi­cul­dade re­side no facto de nos pro­por­ci­o­narem ainda um prazer es­té­tico e terem ainda para nós, em certos as­pectos, o valor de normas e de mo­delos ina­ces­sí­veis.

A res­posta de Marx a esta di­fi­cul­dade pode ser con­si­de­rada algo equí­voca e levar con­sigo al­guns juízos que re­velam as­pectos da ide­o­logia de quem os emite, no caso, po­demos ver, na atri­buição desse es­ta­tuto, traços de uma po­sição es­té­tica tra­di­ci­o­na­lista pró­pria da idade clás­sica. Mas só um fraco leitor fi­caria por este equí­voco. A res­posta efec­ti­va­mente dada à di­fi­cul­dade é um dos mo­mentos em que o pen­sa­mento de Marx aflora uma con­cepção da arte como cons­trução an­tro­po­ló­gica aberta.

Um homem não pode voltar a ser cri­ança sob pena de cair na pu­e­ri­li­dade. Mas não é ver­dade que acha prazer na ino­cência da cri­ança e, tendo al­can­çado um nível su­pe­rior, não deve ele pró­prio imitar aquela ver­dade? Em todas as épocas não se julga ver re­pe­tido o seu pró­prio ca­rácter na ver­dade na­tural do tem­pe­ra­mento in­fantil? Porquê então a in­fância his­tó­rica da hu­ma­ni­dade na­quilo pre­ci­sa­mente em que atingiu o seu mais belo flo­res­ci­mento, porquê esse es­tado de de­sen­vol­vi­mento para sempre per­dido, não há-de exercer um eterno en­canto?

Há cri­anças mal edu­cadas e cri­anças que se dão ares de pes­soas cres­cidas. A maior parte dos povos da an­ti­gui­dade per­ten­ciam a esta ca­te­goria. Os gregos eram cri­anças nor­mais. O en­canto que a sua arte exerce sobre nós não está em con­tra­dição com o ca­rácter pri­mi­tivo da so­ci­e­dade em que ela se de­sen­volveu. Pelo con­trário, é uma con­sequência desse ca­rácter pri­mi­tivo e está in­dis­so­lu­vel­mente li­gado ao facto de as con­di­ções so­ciais e su­fi­ci­en­te­mente ma­duras em que esta arte nasceu – nem po­deria ter nas­cido em con­di­ções di­fe­rentes – nunca mais po­derem re­petir-se.

Esta res­posta à per­ple­xi­dade pro­vo­cada pela pe­re­ni­dade dos efeitos es­té­ticos face à di­mensão his­tó­rica da arte não é sa­tis­fa­tória tal qual, mas co­loca-nos numa si­tu­ação em que se faz a ex­pe­ri­ência de um ana­cro­nismo: as obras de um pas­sado re­la­ti­va­mente dis­tante são ex­pe­ri­en­ci­adas num dado pre­sente como sendo a in­fância his­tó­rica da hu­ma­ni­dade que per­ma­nece à nossa dis­po­sição como uma in­fância per­dida mas re­vi­si­tável. Esta res­posta apre­senta-se-nos como uma res­posta ale­gó­rica, ou seja, uma res­posta que nar­ra­ti­viza uma me­tá­fora. Essa me­tá­fora apre­senta-nos a re­lação entre os su­jeitos mo­dernos e o seu pas­sado ar­tís­tico como uma re­lação entre as di­versas idades do homem e, logo, como uma me­tá­fora an­tro­po­ló­gica que nos trans­porta para o ter­reno de uma an­tro­po­logia cul­tural ou mesmo para uma visão da an­tro­po­gé­nese.

Assim, essa nar­ra­tiva de uma me­tá­fora torna-se uma con­cepção que se abre à com­ple­xi­dade da his­tória. Na his­tória, as obras mo­di­ficam e acu­mulam os sen­tidos que nelas são lidos pela di­fe­rentes ge­ra­ções hu­manas. O valor de normas e de mo­delos ina­ces­sí­veis são uma cons­trução cons­tante e des­con­tínua dessas ge­ra­ções que, ao lerem his­to­ri­ca­mente, de acordo com o seu pre­sente, sentem a di­fe­rença entre esses dois pre­sentes; aquele em que lêem, e aquele em que foram es­critas essas obras e fazem essa di­fe­rença re­cuar para uma es­pécie de origem per­dida, esse pas­sado his­tó­rico.

Assim, a tra­gédia e a epo­peia gregas, a Di­vina Co­média de Dante Alighieri e o te­atro de Sha­kes­peare, apa­recem para su­ces­sivos pre­sentes fu­turos, como obras que formam a nossa in­fância his­tó­rica como hu­manos, o que sig­ni­fica também que são obras em que a for­mação dos cinco sen­tidos é um tra­balho de toda a his­tória do mundo até hoje.




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