A Cultura num impasse

Manuel Augusto Araújo

Não se pode en­cerrar a cul­tura no cír­culo res­tri­tivo da cri­ação ar­tís­tica

A cul­tura é a soma di­nâ­mica e ac­tiva das sa­be­do­rias da vida e dos co­nhe­ci­mentos do fazer, da prá­tica co­lec­tiva de grupos e de in­di­ví­duos. O equí­voco maior é en­cerrar a cul­tura no cír­culo res­tri­tivo da cri­ação ar­tís­tica, o que conduz a pensar-se a cul­tura como uma ilha li­mi­tada às artes e às le­tras, um ter­ri­tório neutro onde os bons es­pí­ritos se podem en­con­trar longe do ruído tri­vial do tra­balho e das ou­tras ac­ti­vi­dades quo­ti­di­anas, sejam as das ci­ên­cias ou das tec­no­lo­gias sejam as da po­lí­tica ou da vida do­més­tica.

É uma ideia re­du­ci­o­nista de cul­tura em que se es­quece e não in­te­ressa en­tender que uma ilha se de­fine sempre em re­lação a um con­ti­nente e que as artes e as le­tras, em­bora se de­sen­volvam com uma re­la­tiva au­to­nomia, são sempre con­di­ci­o­nadas pelas con­di­ções sócio-eco­nó­micas en­vol­ventes. Dante só é o poeta ge­nial da Di­vina Co­média por se estar na tran­sição da Idade Média para a Re­nas­cença e ter o seu centro po­lí­tico e eco­nó­mico em Flo­rença, a sua ci­dade, e Siena. Só é pos­sível surgir um Bau­de­laire no pós Re­vo­lução Fran­cesa, quando a bur­guesia que já de­tinha o poder eco­nó­mico as­sumiu o poder po­lí­tico. Só a Re­vo­lução de Ou­tubro pos­si­bi­litou a ex­plosão de todo o poder cri­a­tivo das van­guardas ar­tís­ticas, que co­la­boram e coin­cidem com a van­guarda po­lí­tica numa sín­tese nunca antes vista nem nunca antes ex­pe­ri­men­tada.

Só assim se con­segue per­ceber os con­tri­butos das artes e das le­tras em cada mo­mento his­tó­rico para a cul­tura como mo­delo an­tro­po­ló­gico do tra­balho hu­mano que se con­cre­tiza nos mais di­versos e plu­rais tipo de ac­ti­vi­dade. Cul­tura en­quanto nú­cleo de prá­ticas e ac­ti­vi­dades que são ins­tru­mentos de pro­dução ma­te­rial, re­cepção e cir­cu­lação que dão sen­tido à vida e ao mundo.

Pensar prá­ticas e po­lí­ticas cul­tu­rais
Marx, na Con­tri­buição para a Crí­tica da Eco­nomia Po­lí­tica, de­fine «pro­dução ma­te­rial na sua forma his­tó­rica es­pe­cí­fica (...) uma forma de­ter­mi­nada da pro­dução ma­te­rial de­riva, em pri­meiro lugar, de uma or­ga­ni­zação de­ter­mi­nada da so­ci­e­dade e, de­pois, de uma re­lação de­ter­mi­nada entre o homem e a na­tu­reza. O sis­tema po­lí­tico e as con­cep­ções in­te­lec­tuais são de­ter­mi­nadas por esses dois fac­tores, por con­se­guinte, também o gé­nero de pro­dução in­te­lec­tual». Marx avisa que se não se ana­lisar assim a pro­dução in­te­lec­tual, fica-se pelo campo das vul­ga­ri­dades e «é im­pos­sível per­ceber as ca­rac­te­rís­ticas da pro­dução in­te­lec­tual que lhe cor­res­ponde e as suas re­ac­ções es­pe­cí­ficas».

Só assim per­ce­bemos como a des­truição da cul­tura está a ser em­pre­en­dida pelo ne­o­li­be­ra­lismo que, si­mu­lando da-lhe maior li­ber­dade por não ter ne­nhuma po­lí­tica cul­tural, uma fa­lácia em que a ide­o­logia bur­guesa é con­tumaz, en­trega-a ao mer­cado que pro­move uma cul­tura de im­pacto má­ximo e ob­so­les­cência ime­diata, ace­le­rada pelas modas e os hu­mores pú­blicos, em que tudo é es­pec­tá­culo pro­mo­vido pelas in­dús­trias cul­tu­rais e cri­a­tivas.

Um bullying cul­tural em que tudo é cul­tura e, con­se­quen­te­mente, nada é cul­tura. Em que a cul­tura dis­si­mula o vazio desta so­ci­e­dade. É esse o papel des­tru­tivo do ca­pi­ta­lismo ne­o­li­beral pós-de­mo­crá­tico em que a mer­ca­do­ri­zação e a ali­e­nação afundam a cul­tura en­quanto par­cela ac­tiva e es­sen­cial do exer­cício de­mo­crá­tico de par­ti­ci­pação dos ci­da­dãos, con­tri­buindo para a con­so­li­dação dos ins­tru­mentos que en­sinam e fazem per­ceber e in­tervir no mundo.

Contra esses ventos da his­tória há que içar as velas, saber içar as velas para se pensar prá­ticas e po­lí­ticas cul­tu­rais efec­tivas re­cu­pe­rando a cul­tura para o seu tra­balho fun­da­mental: trans­formar a vida. Uma luta que é so­bre­tudo po­lí­tica, de uma po­lí­tica pa­trió­tica e de es­querda.

 



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