O capitalismo não tem solução!

MAR­XISMO-LE­NI­NISMO Nem o ca­pi­ta­lismo tem so­lução para as suas con­tra­di­ções fun­da­men­tais, as suas crises e a queda ten­den­cial da lu­cra­ti­vi­dade, nem os tra­ba­lha­dores as­sistem de braços cru­zados a vê-lo ar­rastar a hu­ma­ni­dade para a bar­bárie.

Che Gue­vara chamou a O Ca­pital «um mo­nu­mento à in­te­li­gência hu­mana»

O Ca­pital é a obra magna de Karl Marx. A obra de uma vida. Marx de­dicou qua­renta anos ao es­tudo da eco­nomia, dos quais cerca de trinta a pensar neste livro e mais de um quarto de sé­culo a es­crevê-lo. A versão final do pro­jeto ficou cons­ti­tuída por três li­vros, com a ex­po­sição teó­rica, e um quarto, de­di­cado à his­tória das ideias eco­nó­micas. Em vida, Marx apenas con­se­guiu pu­blicar o pri­meiro. Os ou­tros dois foram pu­bli­cados pos­tu­ma­mente pelo seu co­la­bo­rador e de­vo­tado amigo, Fri­e­drich En­gels. O quarto, in­ti­tu­lado Te­o­rias acerca da Mais-Valia, apenas de­pois da morte de En­gels.

Da edição do pri­meiro livro co­me­mo­rámos, em 2017, os 150 anos. Os res­tantes vo­lumes não es­tavam prontos para pu­bli­cação. Con­sis­tiam num amon­toado de ca­dernos ma­nus­critos, de ras­cu­nhos, às vezes em es­tado muito em­bri­o­nário, in­ci­pi­ente e frag­men­tado, de onde En­gels, se­guindo as in­di­ca­ções dei­xadas pelo amigo, com grande zelo e pa­ci­ência, ex­traiu, or­denou e or­ga­nizou o se­gundo e ter­ceiro li­vros.

Marx viveu e es­creveu O Ca­pital com grandes di­fi­cul­dades ma­te­riais e fi­nan­ceiras. As­sis­tira, im­po­tente, à do­ença e morte de três fi­lhos (além de um recém-nas­cido), dos quais um ra­pa­zinho, já de oito anos, a quem se afei­çoara muito.

Além disso, Marx não era apenas um teó­rico. Era também um mi­li­tante, um ati­vista po­lí­tico. A par do es­tudo, da re­flexão, da re­dação da sua obra, de­sen­volveu uma muito in­tensa ati­vi­dade po­lí­tica. Nada o ilustra me­lhor que o facto de ter sido um dos fun­da­dores e o prin­cipal di­ri­gente da As­so­ci­ação In­ter­na­ci­onal dos Tra­ba­lha­dores (1864-1876), que ficou co­nhe­cida na his­tória como a Pri­meira In­ter­na­ci­onal.

Aprender para trans­formar

Es­que­ma­ti­ca­mente, pode-se con­si­derar como a «versão ca­nó­nica» de O Ca­pital os três pri­meiros li­vros, com a te­oria or­ga­ni­zada de ma­neira a que o pri­meiro in­cide sobre a pro­dução do ca­pital, o se­gundo sobre a cir­cu­lação do ca­pital e o ter­ceiro como que a uni­dade dos dois pro­cessos, a re­pro­dução global do ca­pital e da so­ci­e­dade ca­pi­ta­lista.

Trata-se de uma obra muito rica sob muitos pontos de vista. De­sig­na­da­mente das ci­ên­cias so­ciais, desde logo da eco­nomia, mas também da po­lí­tica, da his­tória, da so­ci­o­logia, da fi­lo­sofia. Até da li­te­ra­tura, visto que Marx es­crevia ma­ra­vi­lho­sa­mente. Che Gue­vara chamou-lhe um mo­nu­mento à in­te­li­gência hu­mana.

O Ca­pital é uma obra ci­en­tí­fica, que re­quer es­tudo e per­se­ve­rança. Não é um tra­tado nem um ma­nual de eco­nomia po­lí­tica. É aquilo que o seu pró­prio sub­tí­tulo in­dica: uma crí­tica da eco­nomia po­lí­tica do seu tempo. Marx vai buscar à eco­nomia po­lí­tica clás­sica o me­lhor que esta havia pro­du­zido, muito es­pe­ci­al­mente a dois grandes eco­no­mistas, res­pe­ti­va­mente do sé­culo XVIII e da vi­ragem para o sé­culo XIX, Adam Smith e David Ri­cardo. Adota a te­oria do valor-tra­balho e uti­liza os seus con­ceitos, que re­vo­lu­ciona, para er­guer um po­de­roso edi­fício in­te­lec­tual, onde de­monstra e apre­senta as suas des­co­bertas, par­ti­cu­lar­mente sobre a na­tu­reza da ex­plo­ração ca­pi­ta­lista.

Si­mul­ta­ne­a­mente homem de ci­ência e de ação, teó­rico e prá­tico, Marx não es­tava apenas in­te­res­sado em in­ves­tigar, em com­pre­ender, em ex­plicar, que são os ob­je­tivos da ci­ência. Queria, acima de tudo, aplicar, in­tervir e trans­formar a re­a­li­dade so­cial. Era já este o sen­tido de uma fa­mosa tese que enun­ciara en­quanto jovem, a de que os fi­ló­sofos têm apenas in­ter­pre­tado o mundo, quando a questão é trans­formá-lo. O ob­je­tivo de Marx era for­necer ins­tru­mentos con­ce­tuais, de aná­lise, de co­nhe­ci­mento e de com­pre­ensão da re­a­li­dade so­cial para, co­le­ti­va­mente, or­ga­ni­za­da­mente, po­dermos in­tervir nela, po­dermos trans­formá-la.

Livro pri­meiro

No livro pri­meiro, que foca nas ques­tões da pro­dução ca­pi­ta­lista, temos fun­da­men­tal­mente ca­pi­ta­listas de um lado, os de­ten­tores dos meios de pro­dução, das fá­bricas, das má­quinas, das ma­té­rias-primas, e ope­rá­rios do outro, de­ten­tores li­vres das suas forças de tra­balho, mas que, des­po­jados das con­di­ções ma­te­riais da sua apli­cação, sem meios nem ob­jetos de tra­balho, são obri­gados a vendê-la àqueles, aos ca­pi­ta­listas. Dois grupos hu­manos, se­pa­rados pelo lugar que ocupam no sis­tema de pro­dução so­cial, em que uns não pro­duzem e ou­tros pro­duzem, se­pa­rados pela re­lação com os meios de pro­dução, que uns pos­suem e ou­tros não pos­suem, se­pa­rados pelo papel que de­sem­pe­nham na or­ga­ni­zação so­cial do tra­balho, em que uns di­rigem e ou­tros são di­ri­gidos.

Marx ex­plica a cons­ti­tuição, de­sig­na­da­mente a partir do feu­da­lismo nas so­ci­e­dades eu­ro­peias, destas duas classes. Como por um lado se reúnem os meios fi­nan­ceiros para os em­pre­en­di­mentos ca­pi­ta­listas, e se criam os em­pre­sá­rios mo­dernos, como por outro se des­vin­culam os pro­du­tores das suas con­di­ções de pro­dução, de­sig­na­da­mente da terra, e se criam os pro­le­tá­rios mo­dernos (a cha­mada acu­mu­lação pri­mi­tiva).

Mas o fun­da­mental do livro pri­meiro não são as ex­pli­ca­ções his­tó­ricas, mas as aná­lises es­tru­tu­rais da forma de or­ga­ni­zação e de fun­ci­o­na­mento da pro­dução ca­pi­ta­lista, sem a qual não po­deria sub­sistir a so­ci­e­dade ca­pi­ta­lista.

Marx vai in­tro­duzir a dis­tinção entre o tra­balho con­creto, di­verso por na­tu­reza, meios e fi­na­li­dade, e o tra­balho abs­trato, o dis­pêndio geral de força de tra­balho hu­mana, o gasto de ener­gias hu­manas, que existe em cada tra­balho con­creto, e vai re­la­ci­onar esta dis­tinção com o duplo ca­ráter da mer­ca­doria, o seu valor de uso, a sua uti­li­dade, e o seu valor de troca, a quan­ti­dade de ou­tras mer­ca­do­rias, ou de di­nheiro, que se trocam por ela. Ex­plica como a subs­tância do valor das mer­ca­do­rias é o tra­balho hu­mano abs­trato e como para sua me­dida se pode tomar o tempo de tra­balho. Mostra como a lei do valor, de que as mer­ca­do­rias se trocam se­gundo as quan­ti­dades de tra­balho so­ci­al­mente ne­ces­sá­rias para as pro­duzir, é, bem com­pre­en­dida, uma lei de dis­tri­buição dos re­cursos hu­manos e ma­te­riais (do «tra­balho vivo» dos ope­rá­rios e do «tra­balho morto» ma­te­ri­a­li­zado nos meios de pro­dução) no in­te­rior da so­ci­e­dade.

O de­sen­vol­vi­mento das ca­te­go­rias, ex­traídas da aná­lise da troca das mer­ca­do­rias, vai con­duzir Marx a des­cor­tinar, muito es­pe­ci­al­mente, a ne­ces­si­dade, o sig­ni­fi­cado, o ca­ráter en­dó­geno e o papel do di­nheiro, em que a eco­nomia clás­sica se tinha en­re­dado com múl­ti­plas con­fu­sões e in­con­sis­tên­cias.

Com a des­co­berta da mais-valia, um dos seus mai­ores con­tri­butos, re­vela que a fonte dos lu­cros dos ca­pi­ta­listas é a mais-valia ar­ran­cada aos ope­rá­rios, que provêm de estes cri­arem para os ca­pi­ta­listas, nas suas jor­nadas de tra­balho, um valor su­pe­rior ao valor que re­cebem dos ca­pi­ta­listas nos seus sa­lá­rios. De serem obri­gados a tra­ba­lhar mais tempo do que o tempo em média ne­ces­sário para se pro­duzir os meios de sub­sis­tência que podem ad­quirir com os sa­lá­rios (cujo valor de­ter­mina o valor da força de tra­balho).

O se­gredo do ca­pital, valor que é adi­an­tado para gerar ainda mais valor, é a apro­pri­ação da mais-valia e con­siste, afinal, numa re­lação so­cial de ex­plo­ração. É cru­cial dis­tin­guir entre o ca­pital cons­tante, in­ves­tido na compra de meios de pro­dução, cujo valor é trans­mi­tido ao pro­duto, e o ca­pital va­riável, in­ves­tido na compra de mão-de-obra, que cria novo valor. Só esta parte va­riável do ca­pital gera mais-valia, porque é ela que ad­quire a força de tra­balho, capaz de criar mais valor do que o seu pró­prio valor.

Com a te­oria da mais-valia, todos os as­petos fun­da­men­tais da di­nâ­mica de de­sen­vol­vi­mento da so­ci­e­dade ca­pi­ta­lista co­meçam a tornar-se in­te­li­gí­veis. Desde a pressão dos ca­pi­ta­listas para pro­longar e in­ten­si­ficar a jor­nada de tra­balho dos ope­rá­rios, até ao es­forço para ino­varem tec­no­lo­gi­ca­mente, ba­ra­te­arem as pro­du­ções, de­sig­na­da­mente os meios de con­sumo, des­va­lo­ri­zarem os sa­lá­rios. Tudo para ex­trair maior quan­ti­dade de mais-valia, para au­mentar os lu­cros, que rein­ves­tidos acu­mulam o ca­pital.

De como, muito es­pe­ci­al­mente, o de­sem­prego, criado no­me­a­da­mente pela re­es­tru­tu­ração das con­di­ções so­ciais da pro­dução e pela subs­ti­tuição de força de tra­balho por má­quinas, que con­dena à mi­séria parte e ameaça todos os tra­ba­lha­dores, se torna fun­ci­onal para a acu­mu­lação ca­pi­ta­lista, ao conter as rei­vin­di­ca­ções sa­la­riais dentro de li­mites con­ve­ni­entes à ex­tração da mais-valia, à ob­tenção de lu­cros, ao pros­se­gui­mento da acu­mu­lação. A con­cen­tra­li­zação e a cen­tra­li­zação nos ca­pi­tais mais fortes evi­den­ciam-se como ten­dên­cias in­trín­secas dessa acu­mu­lação.

Livro se­gundo

No livro se­gundo de O Ca­pital, Marx vai des­trinçar, no ema­ra­nhado da cir­cu­lação das mer­ca­do­rias, os ci­clos da mu­dança de forma do ca­pital in­ves­tido, as suas su­ces­sivas «mu­danças de pele», ma­te­ri­a­li­zado em di­nheiro, em ele­mentos de pro­dução (meios de pro­dução e forças de tra­balho) ou em mer­ca­do­rias, sempre em busca de maior va­lo­ri­zação.

Aqui surge outra dis­tinção im­por­tante no ca­pital. Aquele que é in­ves­tido em meios de tra­balho (como edi­fí­cios e ma­qui­na­rias), que par­ti­cipam em vá­rios pro­cessos de pro­dução, o ca­pital fixo, e aquele que é in­ves­tido em ma­té­rias-primas e au­xi­li­ares ou em força de tra­balho, que se con­somem e têm que ser re­ad­qui­ridas a cada pro­cesso de pro­dução, o ca­pital cir­cu­lante. A di­fe­rente pro­porção de um e outro in­flu­encia o tempo de ro­tação do ca­pital, o tempo que se de­mora a re­cu­perar o ca­pital in­ves­tido (acres­cido da mais-valia).

Surgem, a partir deste livro, os ou­tros as­sa­la­ri­ados, que tra­ba­lham fora da pro­dução, no­me­a­da­mente no co­mércio ou na banca, que por isso não criam valor nem mais-valia. Mas que, como nas ati­vi­dades co­mer­ciais e fi­nan­ceiras, con­tri­buem para dis­tri­buir o valor criado pelo con­junto da so­ci­e­dade e a mais-valia criada pelo con­junto da classe ca­pi­ta­lista. Marx mostra como toda a classe ca­pi­ta­lista, in­dus­triais, co­mer­ci­antes, ban­queiros, toda a es­pécie de ca­pi­ta­listas, ex­plora co­le­ti­va­mente a classe ope­rária.

Os tra­ba­lha­dores do co­mércio ou ban­cá­rios não criam mais-valia, porque se en­con­tram ar­re­dados da pro­dução, mas são, como os ope­rá­rios, ex­plo­rados, porque também eles são obri­gados pelos ca­pi­ta­listas a tra­ba­lhar bas­tante mais horas do que as que se ne­ces­sitam em média para pro­duzir os meios de vida que ad­quirem com os sa­lá­rios. Também eles são pres­si­o­nados pelos pa­trões a pro­longar e a in­ten­si­ficar as suas jor­nadas de tra­balho. Também eles estão em an­ta­go­nismo di­reto com os res­pe­tivos ca­pi­ta­listas, cujos lu­cros di­mi­nuem quando os seus sa­lá­rios sobem.

É no livro se­gundo que Marx en­frenta o cha­mado «pro­blema da re­a­li­zação». Como é que cada parte do pro­duto ca­pi­ta­lista, en­quanto valor (ca­pital cons­tante, ca­pital va­riável, mais-valia) e en­quanto valor de uso (meio de pro­dução, meio de con­sumo ne­ces­sário, para os tra­ba­lha­dores, ou de luxo, para os ca­pi­ta­listas), en­contra no mer­cado outra parte do pro­duto ca­pi­ta­lista para a subs­ti­tuir e pros­se­guir a re­pro­dução ca­pi­ta­lista.

Marx vai re­solvê-lo com a di­visão da pro­dução ca­pi­ta­lista em dois (ou três) de­par­ta­mentos – o de­par­ta­mento da pro­dução de meios de pro­dução e o de­par­ta­mento da pro­dução de meios de con­sumo (em que dis­tin­guiu ainda o setor que produz meios de sub­sis­tência e o setor que produz meios de luxo) – e com os seus co­nhe­cidos es­quemas de re­pro­dução, sim­ples (quando toda a mais-valia é im­pro­du­ti­va­mente con­su­mida) e alar­gada (quando pelo menos parte da mais-valia é rein­ves­tida na pro­dução). Estes es­quemas são os pre­cur­sores da mo­derna aná­lise das ma­trizes de input-output de Le­on­tief, que es­tudam a in­ter­de­pen­dência da eco­nomia ca­pi­ta­lista a um nível menos agre­gado, mais fino. Com eles, Marx de­monstra a vi­a­bi­li­dade do cres­ci­mento ca­pi­ta­lista e mostra como o alar­ga­mento da pro­dução ca­pi­ta­lista cria o mer­cado para a sua pró­pria ex­pansão.

Livro ter­ceiro

Assim pa­rece que o ca­pi­ta­lismo seria eterno. É no livro ter­ceiro que Marx vai es­cla­recer como se de­se­qui­libra e per­turba a acu­mu­lação ca­pi­ta­lista.

A con­cor­rência entre os ca­pi­tais produz, no meio da sua tur­bu­lência, uma ni­ve­lação das ren­ta­bi­li­dades dos novos in­ves­ti­mentos. Cons­titui-se uma taxa geral de lucro. Os preços das mer­ca­do­rias di­fe­ren­ciam-se dos va­lores, de modo a que ca­pi­tais in­di­vi­duais da mesma di­mensão, em­bora com com­po­si­ções or­gâ­nicas di­fe­rentes, isto é, com di­fe­rentes pro­por­ções de ca­pital cons­tante e ca­pital va­riável, abo­ca­nhem por­ções iguais da mais-valia ex­traída glo­bal­mente.

É aqui que se es­tuda o fa­moso pro­blema da trans­for­mação, dos va­lores em preços de pro­dução – os preços que re­sultam do mo­vi­mento de ca­pi­tais ten­den­ci­al­mente igua­lador das taxas de lucro – e da mais-valia em lucro. Esta é, pro­va­vel­mente, a con­tro­vérsia que mais rios de tinta fez correr acerca de O Ca­pital. Marx, nos seus ras­cu­nhos, nada pre­pa­rados para pu­bli­cação, com plena cons­ci­ência de que fazia uma sim­pli­fi­cação, propõe uma so­lução apro­xi­mada em que os va­lores dos out­puts (as mer­ca­do­rias re­sul­tantes) das pro­du­ções são trans­for­mados, mas os va­lores dos in­puts (as mer­ca­do­rias que são uti­li­zadas) não são. Que lhe per­mite, con­tudo, captar o es­sen­cial da di­nâ­mica do lucro da pro­dução ca­pi­ta­lista e mos­trar como os va­lores são os re­gu­la­dores dos preços de pro­dução, em torno dos quais flu­tuam os preços de mer­cado, al­te­rados pela re­lação entre a oferta e a pro­cura.

Mas o mais im­por­tante já es­tava es­ta­be­le­cido. A re­ve­lação de que o lucro, que é o mo­tivo e a con­dição da pro­dução ca­pi­ta­lista, só pode existir com a cri­ação de mais-valia, de que é, no fundo, uma fi­gura trans­for­mada. Ou seja, de que só há lucro e ca­pi­ta­lismo porque os tra­ba­lha­dores são ex­plo­rados.

A mo­bi­li­dade dos ca­pi­tais, sempre em busca das mai­ores ren­ta­bi­li­dades, não apenas entre os ramos da ati­vi­dade pro­du­tiva, mas de toda a ati­vi­dade eco­nó­mica, muito es­pe­ci­al­mente do co­mércio e da banca, re­parte a mais-valia da pro­dução in­dus­trial por toda a classe ca­pi­ta­lista. O lucro co­mer­cial, que re­sulta da di­fe­rença dos preços a que se compra e vende, e o lucro ban­cário, que re­sulta da di­fe­rença dos juros a que se toma em­pres­tado e em­presta, as­sentam ba­si­ca­mente na apro­pri­ação de fra­ções da mais-valia ex­traída pelos ca­pi­ta­listas in­dus­triais aos ope­rá­rios. O ca­pital co­mer­cial e o ca­pital ban­cário não geram mais-valia, mas, ao ace­le­rarem a ro­tação do ca­pital in­dus­trial, ajudam este a criar mais mais-valia.

Ou­tros as­petos fun­da­men­tais para a com­pre­ensão do ca­pi­ta­lismo atual são tra­tados neste livro ter­ceiro. A ri­queza desse ma­te­rial só pode ser aqui par­ci­al­mente men­ci­o­nada. O ca­pital por­tador de juro, «di­nheiro que pro­cria di­nheiro», apa­ren­te­mente des­li­gado da base pro­du­tiva, sem «ne­nhumas ci­ca­trizes da sua gé­nese», como es­sência da ati­vi­dade fi­nan­ceira. Mesmo no que res­peita ao mo­derno fe­nó­meno da fi­nan­cei­ri­zação, de­sig­na­da­mente es­pe­cu­la­tiva, Marx é um vi­si­o­nário, com a con­si­de­ração e de­sen­vol­vi­mento do con­ceito de ca­pital fic­tício – in­cluindo o di­nheiro de cré­dito, os tí­tulos de dí­vida pú­blica e as obri­ga­ções e ações das em­presas –, que re­pre­senta fun­da­men­tal­mente uma rei­vin­di­cação sobre ri­queza ainda a ser criada.

A sua te­oria da renda fun­diária também ganha re­no­vado re­levo con­tem­po­râneo nas aná­lises da ur­ba­ni­zação, da es­pe­cu­lação imo­bi­liária, dos re­cursos mi­ne­rais, do pe­tróleo. Bem com­pre­en­dida, no caso das rendas di­fe­ren­ciais, é uma ver­da­deira te­oria dos so­bre­lu­cros dos mo­no­pó­lios, ge­rados por obs­tá­culos, na­tu­rais ou ar­ti­fi­ciais, à mo­bi­li­dade de ca­pi­tais.

Não obs­tante, o cume da sua ex­po­sição é a aná­lise do mo­tivo que de­sar­ranja a acu­mu­lação ca­pi­ta­lista e que de­sen­ca­deia, ine­vi­ta­vel­mente, as grandes crises, as de­pres­sões. A queda ten­den­cial da taxa geral de lucro. A eco­nomia po­lí­tica clás­sica de­te­tara e re­gis­tara o fe­nó­meno, mas as suas ex­pli­ca­ções não eram sa­tis­fa­tó­rias.

Só com Marx se re­vela aquilo que é: uma ex­pressão da ele­vação da pro­du­ti­vi­dade do tra­balho hu­mano sob o ca­pi­ta­lismo. No am­bi­ente de co­erção re­cí­proca da con­cor­rência ca­pi­ta­lista, que obriga os em­pre­sá­rios a cortar nos custos, para baixar os preços e de­fender as suas quotas de mer­cado, dados os li­mites bi­o­ló­gicos e so­ciais ao pro­lon­ga­mento e in­ten­si­fi­cação das jor­nadas de tra­balho, a única ma­neira, sus­ten­tável, de baixar os custos é com a in­tro­dução de ma­qui­naria (in­cluindo bens não tan­gí­veis como o software), para pro­duzir mais com o mesmo tra­balho, ou pro­duzir o mesmo com menos tra­balho. Se o em­pre­sário não in­troduz ma­qui­naria, não se atu­a­liza, os con­cor­rentes fazem-no e, a prazo, não se aguenta.

As ma­qui­na­rias e as ma­té­rias-primas pro­ces­sadas crescem muito em re­lação às forças de tra­balho em­pre­gues, o que se re­flete numa ele­vação da com­po­sição or­gâ­nica do ca­pital, isto é, o ca­pital va­riável di­minui em re­lação ao ca­pital cons­tante e em re­lação ao ca­pital total. Como a mais-valia é uma parte do novo valor criado e este di­minui em re­lação ao ca­pital adi­an­tado, a taxa de lucro, razão entre o lucro e o ca­pital, ten­derá a cair.

Os fa­tores que es­torvam esta queda, prin­ci­pal­mente o agra­va­mento da ex­plo­ração e a des­va­lo­ri­zação do ca­pital, não a podem im­pedir a prazos mais longos. Nem a ins­ta­lação de grandes crises, quando a acu­mu­lação do ca­pital, por causa da baixa da taxa de lucro, passa a gerar menos lucro. Uma crise de so­bre­a­cu­mu­lação de ca­pital, re­for­çada pela de­sor­ga­ni­zação da pro­dução (crise de des­pro­por­ci­o­na­li­dade) e pela ex­plosão do de­sem­prego, a con­tenção dos sa­lá­rios, das pres­ta­ções so­ciais, da des­pesa pú­blica, que agravam o es­co­a­mento dos bens de con­sumo e dos meios de pro­dução (crise de sub­con­sumo).

Os ca­pi­ta­listas pre­cisam dos tra­ba­lha­dores,

os tra­ba­lha­dores não pre­cisam dos ca­pi­ta­listas

O ca­pi­ta­lismo não tem so­lução para as suas con­tra­di­ções fun­da­men­tais, para as suas crises, para a queda ten­den­cial da taxa de lucro. Essa é mesmo a grande tese de O Ca­pital: o ca­pi­ta­lismo não tem so­lução.

Mas os tra­ba­lha­dores e as suas or­ga­ni­za­ções re­vo­lu­ci­o­ná­rias, como o nosso par­tido, não cruzam os braços à es­pera, in­de­fi­ni­da­mente, ge­ração após ge­ração, que a taxa de lucro chegue a zero, à es­pera do que se po­deria chamar a «morte tér­mica» do ca­pi­ta­lismo1.

Apren­demos, em O Ca­pital, outro grande en­si­na­mento. O de que os ca­pi­ta­listas pre­cisam dos tra­ba­lha­dores, exa­ta­mente porque vivem da ex­plo­ração do seu tra­balho, mas os tra­ba­lha­dores não pre­cisam para nada dos ca­pi­ta­listas. Apro­pri­ando-se dos meios de pro­dução – que à ex­ceção de al­guns re­cursos na­tu­rais, como o solo in­cul­ti­vado, já são o pro­duto do seu tra­balho – podem eles pró­prios or­ga­nizar a pro­dução, a dis­tri­buição e a vida so­cial, de modo a sa­tis­fazer, do modo mais com­pleto pos­sível, as ne­ces­si­dades ma­te­riais e cul­tu­rais de toda a po­pu­lação.

1To­mando de em­prés­timo uma cé­lebre es­pe­cu­lação da fí­sica sobre o des­tino final do Uni­verso, a sua morte tér­mica, quando a energia livre se reduz a zero e já não per­mite a re­a­li­zação de tra­balho, em sen­tido fí­sico, ou a vida (a en­tropia é má­xima)