Bolsonaro no Planalto, Brasil na tormenta

Luís Carapinha

IN­TER­NA­CI­ONAL Já co­meçou a contar o tempo do poder do go­verno de ex­trema-di­reita no Brasil, saído das elei­ções pre­si­den­ciais de Ou­tubro, em que Lula foi im­pe­dido de par­ti­cipar. Bol­so­naro tomou posse dia 1 de Ja­neiro e é o dono que se segue do Pa­lácio do Pla­nalto da ca­pital bra­si­leira, pro­jec­tado por Oscar Ni­e­meyer.

Uma nova fase, de di­fícil luta de re­sis­tência e grandes de­sa­fios, apenas se inicia

Foi ali que re­cebeu a faixa pre­si­den­cial das mãos de Temer, an­tigo vice de Dilma Rous­seff (eleita em 2010 e 2014) e um dos per­so­na­gens cen­trais da es­piral gol­pista que em 2016 con­duziu ao im­pe­a­ch­ment sem fun­da­mento da ex-pre­si­dente cons­ti­tu­ci­onal e que, no ano pas­sado, aca­baria por en­car­cerar Lula da Silva, num pro­cesso ei­vado de ile­ga­li­dades e em que o facto da sua prisão, após con­de­nação em se­gunda ins­tância, cons­titui uma vi­o­lação da pró­pria Cons­ti­tuição bra­si­leira.

Com a en­trada em fun­ções do novo ga­bi­nete, ex­pressão das forças mais re­ac­ci­o­ná­rias e re­tró­gradas da grande bur­guesia do gi­gante sul-ame­ri­cano, o golpe de Es­tado ins­ti­tu­ci­onal chega ao seu ponto mais alto – é este o prisma sob o qual não pode deixar de ser ana­li­sada a as­censão de Bol­so­naro, lem­brando as res­pon­sa­bi­li­dades das forças que, com maior ou menor dis­tan­ci­a­mento, aca­baram por pac­tuar com o de­sen­vol­vi­mento do golpe, em­ba­ladas pela apre­goada cam­panha «anti-cor­rupção». Nunca, desde a ins­tau­ração da di­ta­dura mi­litar em 1964, o pên­dulo do poder no Brasil es­teve tão ex­tre­ma­da­mente à di­reita e tomou conta de um qua­drante tão fu­ri­o­sa­mente an­ti­po­pular, num país em que, desde o go­verno de Temer, se vol­taram a agravar os dé­fices so­ciais e o nível gri­tante da po­breza e das de­si­gual­dades.

Este é, também, o mo­mento em que a contra-ofen­siva im­pe­ri­a­lista na Amé­rica La­tina contra os pro­cessos pro­gres­sistas e de­mo­crá­ticos chega mais longe. Bol­so­naro e o novo res­pon­sável do Ita­ma­raty pro­metem ainda um maior ali­nha­mento da po­lí­tica ex­terna bra­si­leira com os in­te­resses dos EUA. Desde a eleição, su­cedem-se as de­cla­ra­ções de em­patia e apoio a Trump e à po­lí­tica da ac­tual ad­mi­nis­tração norte-ame­ri­cana, ao mesmo tempo que se pro­jec­taram à luz do dia os vín­culos da en­tou­rage e de cam­panha de Bol­so­naro com fi­guras tu­te­lares da ex­trema-di­reita emer­gente dos EUA, como é o caso de Steve Bannon.

Es­ca­lada in­ter­ven­ci­o­nista

Bol­so­naro, in­clu­sive, vi­sitou em 2017 os EUA, na pré-cam­panha. A po­sição agres­siva do novo exe­cu­tivo de Bra­sília fce à Ve­ne­zuela, e a Cuba (veja-se as de­cla­ra­ções ofen­sivas no caso dos mé­dicos cu­banos no Brasil, ao abrigo do pro­grama de co­o­pe­ração com Cuba «Mais Mé­dicos», lan­çado pelo Go­verno de Dilma, que obri­garam à sua re­ti­rada por Ha­vana), dando si­nais da dis­po­ni­bi­li­dade para agir como testa-de-ferro das cam­pa­nhas sub­ver­sivas dos EUA, in­cluindo numa hi­po­té­tica ope­ração mi­litar contra a vi­zinha Ve­ne­zuela, é um factor acres­cido de de­se­qui­lí­brio na cor­re­lação de forças re­gi­onal.

Isto quando o im­pe­ri­a­lismo aposta na es­ca­lada in­ter­ven­ci­o­nista contra Cuba, Ni­ca­rágua e Ve­ne­zuela, a «troika da ti­rania» na ex­pressão de Bolton, o con­se­lheiro de se­gu­rança na­ci­onal da Casa Branca, en­quanto con­tinua a afiar a faca da in­ge­rência in­terna contra a Bo­lívia, em ano de elei­ções cru­ciais para o pro­cesso eman­ci­pador e o go­verno pro­gres­sista de Mo­rales.

Per­ma­nece uma in­cóg­nita a po­sição face à par­ti­ci­pação no BRICS – de que o Brasil de­verá as­sumir a pre­si­dência ro­ta­tiva no ano cor­rente – e ao re­la­ci­o­na­mento com a China, o seu prin­cipal par­ceiro co­mer­cial. Após a eleição, Bol­so­naro fez de­cla­ra­ções afron­tosas contra a China e havia vi­si­tado Taiwan em Março, o que foi en­ten­dido como uma pro­vo­cação. Não se deve es­quecer a im­por­tância es­tra­té­gica do con­texto in­ter­na­ci­onal e, con­cre­ta­mente, da par­ti­ci­pação do Brasil no BRICS e nos pro­cessos de in­te­gração no sub­con­ti­nente ame­ri­cano, no­me­a­da­mente na CELAC e UNASUR, como um dos fac­tores que in­fluiram ac­ti­va­mente no cha­mado pro­cesso de ju­di­ci­a­li­zação da po­lí­tica, sob a más­cara da luta contra a cor­rupção, e na pro­moção do golpe de Es­tado ins­ti­tu­ci­onal.

Esta é, pre­ci­sa­mente, uma das pontas re­ve­la­doras do en­vol­vi­mento dos EUA e do grande ca­pital no pro­cesso gol­pista, e das ne­bu­losas co­ne­xões in­ter­na­ci­o­nais da Lava Jato, in­cluindo as re­la­ções do juiz Sérgio Moro – agora con­ver­tido em su­per­mi­nistro da Jus­tiça – com au­to­ri­dades e agên­cias norte-ame­ri­canas. Um ca­minho in­de­co­roso de su­bor­di­nação da po­lí­tica bra­si­leira aos in­te­resses dos EUA, que já levou Bol­so­naro a agitar a pos­si­bi­li­dade de ins­ta­lação de uma base do Pen­tá­gono no país e a rei­terar a pro­messa a Ne­tanyahu de mudar a em­bai­xada bra­si­leira para Je­ru­salém.

Pi­ores ex­pec­ta­tivas con­firmam-se

O con­teúdo dos dis­cursos de inau­gu­ração do novo pre­si­dente con­firma as pi­ores ex­pec­ta­tivas e os per­ga­mi­nhos de gros­seiro pro­vo­cador e perfil ul­tra­mon­tano que no­ta­bi­li­zaram Bol­so­naro. Este é o per­so­nagem que, na abo­mi­nável sessão par­la­mentar que de­cidiu o afas­ta­mento de Dilma Rous­seff, con­cluiu assim a sua de­cla­ração de voto: «Pela me­mória do co­ronel Carlos Al­berto Bri­lhante Ustra, o pavor de Dilma Rous­seff, pelo exér­cito de Ca­xias, pelas Forças Ar­madas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim» (20.04.2016, BBC.com). Ustra, um dos tor­tu­ra­dores de Dilma nos tempos da di­ta­dura, di­rigiu o órgão de re­pressão po­lí­tica do go­verno mi­litar.

O an­ti­co­mu­nismo ca­ver­ní­cola é pedra an­gular do dis­curso da po­de­rosa clique che­gada ao poder, que Bol­so­naro vem bol­çando aos quatro ventos. A cru­zada contra o «viés so­ci­a­lista», que teria aco­me­tido o Brasil nos 13 anos de go­ver­nação de Lula e Dilma, e a des­ti­lação do ódio e vir­tual pavor face ao «pe­rigo ver­melho» dão rosto à cam­panha ide­o­ló­gica suja de con­tornos fas­ci­zantes, ocu­pando o vazio e de­ma­gogia ras­teira que pautam o seu dis­curso, cujo efeito não deve ser porém su­bes­ti­mado.

As pri­meiras me­didas anun­ci­adas con­firmam a gana e ur­gência do novo poder em in­ten­si­ficar o ajuste de contas com o pas­sado pro­gres­sista re­cente – apesar de o PT e ali­ados à es­querda nunca terem dis­posto de uma mai­oria par­la­mentar –, ini­ciado com o go­verno gol­pista de Temer. A re­forma da Pre­vi­dência So­cial é um dos alvos ime­di­atos, em mais uma al­me­jada ma­cha­dada do ca­pital contra os di­reitos so­ciais do povo bra­si­leiro, par­ti­cu­lar­mente das ca­madas mais des­fa­vo­re­cidas.

Mas também novos ata­ques contra os di­reitos la­bo­rais e o Di­reito do Tra­balho (in­cluindo um corte no au­mento do sa­lário mí­nimo apro­vado pelo Con­gresso), os di­reitos à terra dos povos in­dí­genas – e cer­ta­mente dos mi­lhões de sem terra –, a pri­va­ti­zação da Ele­tro­bras e o fre­nesim ali­e­nador do ca­pital pú­blico, a in­ten­si­fi­cação dos me­ca­nismos da jus­tiça se­lec­tiva e do es­tado de ar­bi­tra­ri­e­dade, da ten­ta­tiva de per­se­guição e cri­mi­na­li­zação dos mo­vi­mentos po­pu­lares e da es­querda; de «re­tirar o viés ide­o­ló­gico» das «re­la­ções in­ter­na­ci­o­nais» do Brasil, servil pro­pó­sito que acaba de ser com­pro­vado com a es­treia do novo ga­bi­nete na acção de­ses­ta­bi­li­za­dora do cha­mado Grupo de Lima, em torno da cam­panha que visa não re­co­nhecer a le­gi­ti­mi­dade do man­dato cons­ti­tu­ci­onal do pre­si­dente Ma­duro, com início a 10 de Ja­neiro, re­sul­tado da vi­tória nas pre­si­den­ciais de 20 de Maio, con­tras­tando, por exemplo, com a po­sição so­be­rana do go­verno me­xi­cano, do recém-em­pos­sado pre­si­dente Lopez Obrador, que re­jeitou as­sinar a de­cla­ração anti-ve­ne­zu­e­lana.

Tempo de re­sis­tência

Em sú­mula, os tra­ba­lha­dores e o povo bra­si­leiro terão de contar com um go­verno que cons­titui uma real e atroz ameaça aos seus di­reitos de­mo­crá­ticos, con­quistas e as­pi­ra­ções so­ciais e que re­pre­senta um factor adi­ci­onal de ins­ta­bi­li­dade no plano re­gi­onal e in­ter­na­ci­onal. A vo­tação de Bol­so­naro foi ex­pres­siva, mercê da in­fernal cam­panha acu­mu­lada de men­tira e mis­ti­fi­cação pro­mo­vida pela co­mu­ni­cação so­cial e nas «redes so­ciais», pro­cesso que re­monta à vaga de pro­testos anti-PT de 2013, da co­lossal ins­tru­men­ta­li­zação do pre­tenso com­bate à cor­rupção e à cri­mi­na­li­dade, eco­ando o pri­ma­rismo da má­xima «vamos pôr ordem na casa», do bran­que­a­mento da sua na­tu­reza re­tró­grada e fas­ci­zante por parte subs­tan­cial da classe po­lí­tica bra­si­leira (veja-se a po­sição de «neu­tra­li­dade», na se­gunda volta da eleição de Ou­tubro, de par­tidos como o PSDB e o MDB e fi­guras como Fer­nando Hen­rique Car­doso).

Ainda assim, ficou aquém, tanto em nú­mero de votos como em termos per­cen­tuais, da vo­tação al­can­çada por Lula em 2006, o can­di­dato co­lo­cado fora da con­tenda pelo apa­relho ju­di­cial, com o gra­vís­simo con­curso da in­tro­missão da cú­pula mi­litar, que pres­si­onou pu­bli­ca­mente contra a sua li­ber­tação. A re­a­li­dade é que a mai­oria do povo bra­si­leiro não votou em Bol­so­naro e não é pos­sível ig­norar a vo­tação do can­di­dato do campo de­mo­crá­tico lan­çado pelo PT e PCdoB, Haddad, al­can­çando mais de 47 mi­lhões de votos.

O arco de forças da di­reita que dá rosto e move os cor­de­li­nhos do go­verno de Bol­so­naro tem, pois, pressa. Sabe que a sua agenda an­ti­na­ci­onal pro­vo­cará o des­con­ten­ta­mento po­pular e a re­sis­tência de­mo­crá­tica. Ver-se-á até onde con­se­guirá o novo poder levar à prá­tica as li­nhas ul­tra­con­ser­va­doras do pro­grama pro­fun­da­mente anti-so­cial e an­ti­de­mo­crá­tico que ameaça o re­gime cons­ti­tu­ci­onal pós-di­ta­dura. À sombra do an­tigo ca­pitão do exér­cito de­mi­tido das forças ar­madas, com uma tra­jec­tória po­lí­tica de quase três dé­cadas como de­pu­tado fe­deral pau­tada pela me­di­o­cri­dade e tru­cu­lência das suas bra­vatas re­ac­ci­o­ná­rias, aco­lita-se uma plêiade de sec­tores e in­te­resses cru­zados. Ali estão re­pre­sen­tados a in­flu­ente di­reita mi­litar, os in­te­resses da alta fi­nança cos­mo­po­lita, dos ca­pi­ta­listas, la­ti­fun­diá­rios e do agro-ne­gócio; a mais re­fi­nada e re­ac­ci­o­nária ve­na­li­dade po­lí­tica e ins­ti­tu­ci­onal, agora sob o manto «pu­ri­fi­cador» do mi­nistro-in­qui­sidor Moro; o obs­cu­ran­tismo evan­gé­lico, num pro­jecto e numa di­nâ­mica de es­sência fas­ci­zante.

A avidez e vo­ra­ci­dade pelo poder e os im­pe­ra­tivos da agenda par­ti­cular dos seus cons­ti­tuintes, o an­ti­co­mu­nismo e ódio às classes po­pu­lares fun­ci­onam como de­no­mi­nador comum. A «chapa» elei­toral que guindou Bol­so­naro ao Pla­nalto, o PSL, é uma força re­ac­ci­o­nária inex­pres­siva até à vo­tação de 7 de Ou­tubro, na qual se con­verte na se­gunda ban­cada na Câ­mara de De­pu­tados, de­pois do PT.

Num quadro de maior frag­men­tação po­lí­tica ha­verá que contar com a emer­gência de di­fe­renças e lutas in­tes­tinas no seio da co­li­gação go­ver­na­mental, que aliás já têm eco na im­prensa bra­si­leira.

Uma nova fase, de di­fícil luta de re­sis­tência e grandes de­sa­fios, apenas se inicia, na cer­teza de que a úl­tima pa­lavra ca­berá ao povo tra­ba­lhador bra­si­leiro e à acção das suas or­ga­ni­za­ções po­lí­ticas e so­ciais avan­çadas.




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