Rotas

Correia da Fonseca

Já perto da meia-noite da pas­sada se­gunda-feira, por­ven­tura para não correr o risco de ferir sen­si­bi­li­dades vul­ne­rá­veis, a RTP trans­mitiu um do­cu­men­tário, «Rotas da Es­cra­va­tura», acerca dos quase mil anos de es­cra­va­tura em África entre 476 e 1375. Foi so­bre­tudo uma abor­dagem de ca­rácter geral, sem es­pe­cial in­ci­dência neste ou na­quele lugar e também sem re­fe­rência a si­tu­a­ções de efe­tiva es­cra­va­tura ha­vida ainda que à margem da in­fame ac­ti­vi­dade de cap­tura e venda que ca­rac­te­rizou a ac­ti­vi­dade es­cla­va­gista mais clás­sica. Esta li­mi­tação im­plicou na­tu­ral­mente a ex­clusão de prá­ticas lon­ga­mente ha­vidas nas co­ló­nias por­tu­guesas em África, aliás em pa­ra­lelo com ou­tros co­lo­ni­a­lismos eu­ro­peus, cuja exis­tência seria sau­dável re­co­nhecer e en­frentar não apenas por uma questão de ho­nes­ti­dade in­te­lec­tual, mas também e so­bre­tudo porque um certo grau de hi­po­crisia em re­lação ao pas­sado é em al­guma me­dida im­pe­di­tivo de fluidez nas re­la­ções pre­sentes com an­tigas co­ló­nias. Sem pre­juízo da pas­sada exis­tência de co­lo­ni­a­lismos mais duros da res­pon­sa­bi­li­dade de ou­tros países eu­ro­peus, o mito do co­lo­ni­a­lismo por­tu­guês de ín­dole pa­ternal e quase fra­terna não ajuda o ho­nesto en­ten­di­mento entre países agora igual­mente li­vres: ao con­trário do que por vezes pa­rece, a im­pos­tura não ajuda a curar ou a ci­ca­trizar fe­ridas.

Um di­reito «na­tural»

Ainda antes de 61, mas não muito, um por­tu­guês achava na­tural es­bo­fe­tear um an­go­lano numa rua de Lu­anda porque o afri­cano, cru­zando-se com ele num pas­seio es­treito, não des­cera ime­di­a­ta­mente para o leito da rua a fim de lhe fran­quear larga pas­sagem. E o por­tu­guês ga­bava-se disso. Era uma si­tu­ação mi­nús­cula mas ilus­tra­tiva de um pen­sa­mento não apenas co­lo­nial mas também es­cra­vo­crata. Muito para além deste caso exem­plar, po­de­remos lem­brar o tipo de re­la­ci­o­na­mentos ha­vidos na área de tra­balho, e não só, para con­cluir que, em­bora ter­mi­nada há muito a es­cra­va­tura formal e «clás­sica», algum quase ins­tin­tivo pen­sa­mento es­cla­va­gista a par com uma prá­tica a con­dizer so­bre­vi­veram lon­ga­mente nas co­ló­nias por­tu­guesas. Fun­ci­o­ná­rios do Banco de An­gola en­quanto banco co­lo­nial por­tu­guês es­pan­tavam-se e in­dig­navam-se com o in­sig­ni­fi­cante preço da mão-de-obra local que fi­gu­rava nos ca­dernos de en­cargos que apoi­avam pe­didos de cré­dito ban­cário. Quanto ao tra­balho do­més­tico ou afim pres­tado por an­go­lanos, não de­correu ainda o tempo bas­tante para que se haja dis­si­pado a me­mória de um tra­ta­mento pa­tronal não ne­ces­sa­ri­a­mente cruel, mas sem dú­vida apa­ren­tado com uma es­cra­vidão suave. E, aliás, si­tu­a­ções re­centes da re­lação entre Por­tugal e An­gola re­ve­laram a so­bre­vi­vência no lado por­tu­guês de re­mi­nis­cên­cias de um pen­sa­mento co­lo­ni­a­lista ainda an­co­rado no sen­ti­mento por­ven­tura in­de­tec­tado de que num afri­cano sub­siste quase por na­tu­reza qual­quer coisa de es­cravo e num eu­ropeu por­tu­guês qual­quer coisa de «se­nhor».




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