A literatura com causas

Domingos Lobo

Contos Cor­rentes é de­núncia e crí­tica e põe co­ra­jo­sa­mente o dedo em ve­lhas ci­ca­trizes

A Li­te­ra­tura de causas, a Li­te­ra­tura capaz de expor e di­a­logar com os grandes pro­blemas da con­tem­po­ra­nei­dade, a que re­flecte um país e as suas idi­os­sin­cra­sias, as de­rivas cul­tu­rais, po­lí­ticas e so­ciais, e sobre essa re­a­li­dade re­flecte é, nos tempos que al­guns pre­tendem re­gres­sivos, au­to­ri­tá­rios e de livre es­bulho, um acto de co­ragem e de ci­da­dania.

De­fen­demos uma Li­te­ra­tura que seja, a um tempo, de raiz por­tu­guesa e uni­versal, não no sen­tido stan­dar­di­zado que Go­ethe, no seu con­ceito de «li­te­ra­tura mun­dial» (Wel­tli­te­ratur) de­finiu, mas que se im­ponha pela in­ven­tiva do dis­curso, pela sin­gu­la­ri­dade so­cial, an­tro­po­ló­gica e cul­tural que essa li­te­ra­tura trans­porte. Uma Li­te­ra­tura que afirme, or­gu­lhosa e lú­cida, a sua língua, as suas gentes, a sua pai­sagem e não seja pas­tiche su­bal­terno e me­díocre dos mo­dismos e da va­cui­dade, que o im­pério anglo-sa­xó­nico tenta impor, como do­mínio dos ima­gi­ná­rios, a ou­tros povos.

A Li­te­ra­tura como agente trans­gressor e trans­fi­gu­rador do real, que prevê e re­flecte sobre os fe­nó­menos exis­ten­ciais, que in­veste na utopia de pensar uma so­ci­e­dade justa e igua­li­tária, que exige a dig­ni­dade da nossa con­dição, co­meça a ser ba­nida ou olhada de sos­laio pelos po­deres da bur­guesia e seus agentes, que tentam a im­po­sição de uma ver­dade única e de um olhar con­di­ci­o­nado sobre a re­a­li­dade. Daí que o es­critor não deva, por mo­tivos que lhe são im­postos ex­te­ri­or­mente, alhear-se do seu tempo, da língua em que se ex­pressa (que lhe com­pete sal­va­guardar) e das com­ple­xi­dades do seu tempo his­tó­rico.

A Li­te­ra­tura pela sua pró­pria função so­cial e cul­tural, pela pe­re­ni­dade que o ob­jecto livro per­mite, tem o dever de in­qui­e­tude, de per­ple­xi­dade crí­tica, de ques­ti­o­na­mento face às de­rivas do mo­mento so­cial e po­lí­tico em que se cons­trói. Cabe ao autor, por­tanto, re­flectir sobre os li­mites da ac­ti­vi­dade crí­tica na nar­ra­tiva li­te­rária, os de­sa­fios éticos que essa acção de­ter­mina, num mundo for­te­mente pa­dro­ni­zado pela ide­o­logia da classe e dos media do­mi­nantes, ide­o­logia que estes, na sua «missão his­tó­rica», já sem ini­bi­ções, ple­na­mente ex­pressam e di­vulgam.

Contos Cor­rentes, de José Goulão, vem neste sen­tido, tanto nos seus ex­cessos (e já tar­dava, na nossa ac­tual li­te­ra­tura, este olhar frontal, este tes­te­munho sa­tí­rico, sobre as nó­doas po­lí­ticas e so­ciais do País, que aos ho­mens justos pro­fun­da­mente in­dignam), mas também o que neste texto é de­núncia e crí­tica, modo ar­guto e co­ra­joso de pôr o dedo em ve­lhas ci­ca­trizes, as que ma­goam e cor­roem este tempo por­tu­guês e vêm des­truindo, sub­ter­rânea mas te­naz­mente, a li­ber­dade e os di­reitos con­quis­tados em Abril.

Para des­crever esta re­a­li­dade, que os média di­vulgam sob o seu crivo de classe, Goulão rein­venta a lin­guagem, cria um modo ágil de contar, trans­fi­gura a ac­tu­a­li­dade sobre a qual es­pe­cula e vai, sagaz, através de um humor ra­sante, que é forma eficaz de des­montar cri­ti­ca­mente os fe­nó­menos, in­ves­tindo sobre as ne­go­ci­atas e os prin­ci­pais tí­teres que ha­bitam este rec­tân­gulo plan­tado ao sol.

Temos, assim, a Nação que se es­fuma, o robot, um sub­ma­rino ama­relo, lobos e ove­lhas ne­gras, um con­cílio, chuis, ter­ro­ristas, ca­bras ne­cró­filas, ge­ne­rais, lobos, ove­lhas e pas­tores, o Fiscal-Mor, um Chefe de Es­tado com Papas na Língua, um ban­queiro (como não podia deixar de ser), um Mi­nistro das Do­enças, um Mi­nistro da Terra, uma Velha Se­nhora, muitos ou­tros mi­nis­tros, numa ga­leria in­fin­dável de per­so­na­gens pí­caras, ou­tras graves, pelas quais desce, cu­telo acu­ti­lante, a crí­tica mordaz de José Goulão. Um gozo pleno de sen­tidos, de signos e si­nais da re­a­li­dade so­frida aqui e agora.




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