Viagem aos locais dos crimes

Correia da Fonseca

Ainda que em le­tras mi­nús­culas, es­tava anun­ciada a trans­missão de um pro­grama capaz de in­te­ressar quantos en­tendem que manter a me­mória de um certo pas­sado é não apenas um dever mas também quase um acto de le­gí­tima de­fesa: seria no canal «His­tória», não aces­sível a todos os te­les­pec­ta­dores e de resto nem sempre es­pe­ci­al­mente in­te­res­sante, e desta vez trazia um tí­tulo di­gamos que pro­missor, «Vi­agem ao in­te­rior do Ho­lo­causto». A trans­missão ao fim da tarde não era es­pe­ci­al­mente pro­pícia a um amplo vi­si­o­na­mento, mas bem se sabe que em ma­téria de te­le­visão, e não apenas da te­le­visão por­tu­guesa, não po­demos render-nos ao equí­voco de supor como dis­po­ní­veis nos ho­rá­rios mais pro­pí­cios os mais im­por­tantes e/​ou ape­la­tivos con­teúdos, pelo que pelo menos um largo pu­nhado de te­les­pec­ta­dores terá acor­rido ao «His­tória» na es­pe­rança de não perder o seu tempo. Não perdeu: a re­vi­sita à gi­gan­tesca má­quina de crime que foram os campos nazis de con­cen­tração e ex­ter­mínio re­conduz-nos sempre à di­mensão da bes­ti­a­li­dade que ha­bitou a Eu­ropa no pas­sado sé­culo e que, tanto quanto se sabe ou fa­cil­mente se adi­vinha, al­guns não se re­cu­sa­riam hoje a rein­tro­duzir se para isso lhes fossem dadas opor­tu­ni­dade e margem.

Como um tá­cito aviso

Tra­tava-se de um pro­grama «made in USA», o que não seria pro­pri­a­mente uma re­co­men­dação, mas muito do que ali nos foi con­tado ou dado a ver foi útil para a sau­dável ne­ces­si­dade de man­termos viva a me­mória de um pas­sado ter­rível que não está si­tuado tão longe no tempo quanto por vezes pa­rece, nem de algum modo é tão im­pro­vável num qual­quer fu­turo quanto seria im­pe­rioso que es­ti­vesse. Pro­ve­ni­ente dos Es­tados Unidos, con­firmou o que seria na­tural es­pe­rarmos dele: a de­núncia do Ho­lo­causto e a evo­cação das suas ví­timas visou quase ex­clu­si­va­mente o an­tis­se­mi­tismo nazi e os mi­lhões de ju­deus as­sas­si­nados nos campos de ex­ter­mínio ou de «sim­ples» con­cen­tração, nada ou quase nada o as­sas­sínio de «presos po­lí­ticos» nesses lu­gares de horror, pra­ti­ca­mente nada os co­mu­nistas como alvos pri­o­ri­tá­rios da re­pressão nazi. Mesmo o as­sas­sínio de quinze mil mi­li­tares so­vié­ticos apri­si­o­nados em com­bate, isto é, pri­si­o­neiros de guerra, crime ex­pres­sa­mente proi­bido por todas as con­ven­ções in­ter­na­ci­o­nais e con­tudo pra­ti­cado pelos nazis, foi apenas re­fe­rido de pas­sagem e como que em sur­dina. Também o caso da Ucrânia, de onde saíram mi­lhares de com­ba­tentes que ali­nharam com os in­va­sores nazis contra o es­tado a que de­viam le­al­dade, assim con­fir­mando da pior ma­neira o tra­di­ci­onal fi­lo­ger­ma­nismo ucra­niano que aliás se mantém hoje com ve­ne­nosas con­sequên­cias, apenas foi alu­dido de leve. A bes­ti­a­li­dade do na­zismo e dos nazis, porém, ficou de­nun­ciada com cla­reza. Ex­pres­sa­mente quanto aos anos entre 39 e 45 do sé­culo XX. Im­pli­ci­ta­mente como uma es­pécie de tá­cito aviso com per­ma­nente va­li­dade.




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