Uma exposição de pintura nas Caldas da Rainha

Manuel Augusto Araújo

Esta ex­po­sição de pin­tura é também um acto de re­sis­tência

Nas Caldas da Rainha, no Museu José Ma­lhoa, que além do maior con­junto de obras do seu pa­trono tem uma im­por­tante co­leção de pin­tura e de es­cul­tura dos fi­nais do séc. XIX e das pri­meiras dé­cadas do séc. XX, uma secção de Ce­râ­mica das Caldas, des­taque para Ra­fael Bor­dalo Pi­nheiro, e um con­junto único das 60 es­cul­turas de ter­ra­cota da «Paixão de Cristo», o que o torna num museu de vi­sita obri­ga­tória, na sua sala de ex­po­si­ções tem­po­rá­rias inau­gurou-se uma ex­po­sição de pin­tura de José Santa-Bár­bara.

Uma ex­po­sição que é uma afir­mação da im­por­tância da pin­tura num tempo em que o pa­ra­digma da arte con­tem­po­rânea, como a de­fine Nathalie Hei­nich, é a in­dis­ci­plina entre as dis­ci­plinas, no hi­bri­dismo entre artes vi­suais, artes per­for­ma­tivas, filme, mú­sica, ar­qui­tec­tura, de­sign, moda, que se de­sen­rolam em ce­ná­rios que se cons­troem e trans­mitem en­quanto nar­ra­tivas de ex­cen­tri­ci­dades, de ane­do­tá­rios pro­du­zidos pelos ar­tistas que se re­plicam nos ecos de uma crí­tica de arte re­du­zida a uma es­pécie de cró­nica e de pro­moção pu­bli­ci­tária dos ar­tistas sem co­locar ques­tões de ordem es­té­tica, poé­tica ou até re­la­ci­o­nadas com a his­tória de arte, far­fa­lhadas em­bru­lhadas em papel de es­tanho a fingir que é de prata, a prá­tica da pin­tura pa­rece um exer­cício ana­cró­nico, ob­so­leto.

Nesse quadro, esta ex­po­sição de pin­tura é também um acto de re­sis­tência. Um es­pelho ima­gi­nário que é um ma­ni­festo a favor da pin­tura, das artes vi­suais. José Santa-Bár­bara pinta com os­ten­siva in­di­fe­rença por essas cor­rentes de arte con­tem­po­rânea, sem nunca se alhear das in­qui­e­ta­ções e das ex­pe­ri­men­ta­ções es­té­ticas e téc­nicas da His­tória de Arte.

Pinta para pro­mover a co­mu­ni­cação entre as pes­soas. Pinta para nos mos­trar o mundo que olhamos e não vemos ime­di­a­ta­mente, co­me­çamos a ver lendo os seus qua­dros, os seus de­se­nhos, as suas gra­vuras, como o faz nas sé­ries de­di­cadas à União Eu­ro­peia, aos quo­ti­di­anos por onde vi­a­jamos di­a­ri­a­mente nos trans­portes pú­blicos, na­queles em que se en­frentam as lutas pelos di­reitos so­ciais, nos Ex­tra­va­gá­rios.

Mesmo quando pinta para ilus­trar obras li­te­rá­rias, Me­mo­rial do Con­vento ou Curva da Es­trada, não se li­mita a dar forma e cor a su­cessos ima­gi­nados pelos es­cri­tores. Per­corre a den­si­dade e o ima­gi­nário dos textos para cons­truir outro ima­gi­nário que, re­cu­sando as des­cri­ções li­te­rais, o com­pre­ende para que a vi­si­bi­li­dade da pin­tura dê vi­si­bi­li­dade ao texto, man­tendo um diá­logo ín­timo em que, texto e pin­tura, não perdem au­to­nomia. No li­mite, o Me­mo­rial do Con­vento ou a Curva da Es­trada de José Santa-Bár­bara até po­diam ter sido an­te­ri­ores aos ro­mances, apesar disso ser uma im­pro­ba­bi­li­dade com­ple­ta­mente ir­re­a­li­zável.

O que o ar­tista faz é a afir­mação da au­tarcia da pin­tura. Afir­mação bem ex­plí­cita nesta ex­po­sição em que o que in­te­ressa a José Santa-Bár­bara quando pinta, o que lhe in­te­ressa na pin­tura é a se­me­lhança, como a se­me­lhança faz des­co­brir o mundo ex­te­rior, rein­ven­tando esse mundo noutro mundo sem que o sen­tido e o sig­ni­fi­cado da his­tória, seja em sen­tido amplo ou quo­ti­diano, se percam.

José Santa-Bár­bara mul­ti­plicou a sua ac­ti­vi­dade por inú­meras áreas ar­tís­ticas, pin­tura, es­cul­tura, de­sign grá­fico, de­sign de equi­pa­mento sem nunca perder o norte, sejam as obras re­pro­du­tí­veis ou não re­pro­du­tí­veis tec­ni­ca­mente, da es­sência da arte vi­sual, da per­cepção fí­sica da ima­gi­nação, da cri­a­ti­vi­dade que fazem da arte uma fonte de ins­pi­ração mas também de eman­ci­pação.

Esta ex­po­sição é a afir­mação da pin­tura-pin­tura. Pin­tura que dis­pensa le­gendas, dis­pensa textos e co­men­tá­rios. Arte que re­plica o es­plendor das obras ex­postas neste Museu.

Sala de Ex­po­si­ções Tem­po­rá­rias do Museu José Ma­lhoa, Caldas da Rainha, todos os dias ex­cepto se­gundas-feiras, das 10h às 12h30 e das 14h às 18h




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