Uma vez em cada ano, podemos ter um serão agradável assistindo na RTP2 à distribuição dos Prémios Sophia: entre outras razões para isso, que são muitas, avultará a confirmação de que em Portugal nem tudo é futebol, ao contrário do que a própria televisão muitas vezes parece indicar. Assim, há poucos dias e uma vez mais pudemos confirmar com os nossos próprios olhos e ouvidos que a cultura existe entre nós ou, talvez melhor, que vai existindo, o que, mais que corresponder a uma esperança dificilmente sobrevivente, é raiz de momentos de prazer e algum reconforto. Pelo palco da sala do Estoril onde a cerimónia ocorreu desfilaram umas dezenas de portuguesas e portugueses que de um modo geral os restantes cidadãos desconhecem mas de quem poderiam orgulhar-se se, ao longo dos dias, a televisão em geral e a operadora pública em especial cuidassem em substituir uns minutos de telenovelas e/ou de futebol por informação acerca do que essa gente mais ou menos ignorada vai fazendo. E talvez para muitos telespectadores tenha sido surpreendente a revelação de que tantos compatriotas sejam reconhecidamente notáveis apesar de, pelo menos na maioria dos casos, só dificilmente surgirem nos ecrãs dos televisores.
A preto-e-branco
Muito se poderia e deveria escrever acerca dos diversos prémios entregues, mas infelizmente o espaço disponível é limitado e a sabedoria é escassa. Seja permitido, porém, o destaque de um dos prémios por duas ou três razões de primordial importância: porque num só prémio convergem de algum modo duas actividades culturais, a literatura e o cinema; porque o tema motivador é o da efectiva epopeia do povo alentejano sobreexplorado e sempre resistente; porque o autor premiado está de certo modo vinculado ao invisível património comum que é a fraterna solidariedade entre comunistas. Trata-se do prémio consagrando o melhor filme português em 2018 e atribuído a «Raiva». A estória é, como se saberá, a do romance «Seara de Vento», de Manuel da Fonseca, e transmite-nos um episódio da efectiva resistência no Alentejo e da fibra das suas gentes; o realizador premiado é Sérgio Tréfaut que, ausente, de longe manifestou o desejo de dedicar o prémio recebido a seu pai, o jornalista Miguel Urbano Rodrigues, falecido há um pouco menos de dois anos, cujo brilhante percurso profissional passou também por este jornal. Como se vê, dificilmente um prémio Sophia poderia tocar-nos mais: quase se poderia dizer que este prémio, pela realidade em que radica a estória inicial, pelo autor que a escreveu, pelo povo que efectivamente a protagoniza, pelo cineasta que a plasmou em sons e imagens (adequadamente a preto-e-branco), se torna um pouco património de todos os comunistas. Resta desejar que este facto não implique sequer um vestígio de alguma má vontade contra os muito simpáticos prémios Sophia.